O Afilhado
Nando da Costa Lima
Ele era o
retrato do imprestável, bigode fino, chapéu de palinha, dois dentes de ouro, e
conservava um palito sempre no canto da boca. Falava pelos cotovelos e tinha
tudo que é curso por correspondência. Mas só conseguiu subir na vida pendurado
no fato de ser sobrinho de Getúlio Vargas. Se elegeu vereador e hoje é
vice-prefeito graças ao padrinho que ele nunca conheceu, mas que nos seus
discursos tornava-se íntimo, falava do ex-presidente como se tivesse convivido
no particular, Getúlio conversava com ele todos os problemas políticos e
econômicos do País. Isto com três anos de idade, pois segundo seus adversários
ele tinha essa idade quando o presidente morreu. Mas como ficou claro, quase
ninguém sabia seu verdadeiro nome, todo mundo só conhecia o afilhado de
Getúlio, ele era tão famoso que tornou-se padrinho oficial de formaturas do 2º
grau, em todas ele tava lá colado. O discurso era o mesmo: “A vida de Getúlio,
meu padrinho...”.
Naquele dia
ele era só alegria, aquela notícia veio a calhar, conseguiu ser vice-prefeito
graças ao apadrinhamento. Como prefeito seria bem mais fácil, chegando lá ia
seguir os passos do padrinho, riscando apenas o episódio final. Sua casa estava
em clima de festa, é que o prefeito sofreu um acidente, virou a rural vindo da
inauguração d’uma boate numa cidadevizinha. Tava cheio do pau, tomou mais de
dois litros de “5 Estrelas” sozinho, os amigos ainda quiseram segurá-lo mas não
teve jeito, ele quando bebia e escutava Amado Batista só sossegava depois que a
esposa dava uma surra de cabo de machado, e foi nessa que virou o carro.
Tava mal,
tão mal que o vice-prefeito já tava preparando o discurso pro funeral, até que
enfim apareceu uma chance, dois anos sendo vice daquele biriteiro só por ele
ser mais rico. Agora ele ia mostrar sua capacidade ao povo. Ele, o afilhado de
Getúlio, começava sua triunfante caminhada rumo à presidência. Só faltava
aquele sacana acabar de morrer, tava ligando pro hospital de cinco em cinco
minutos pra saber o estado do prefeito. A primeira dama estava desesperada.
Enquanto isso, a mulher do vice-prefeito preparava o banquete de posse.
O vice-prefeito, cansado de telefonar pro
hospital, resolveu ir ver o fim do homem pessoalmente, tava tenso demais pra
esperar sentado. Pegou seu jeep e partiu pra perto do futuro defunto. Deu azar,
quando chegou no hospital a primeira pessoa que viu foi o prefeito, de pé firme
e forte, só precisou tomar um soro glicosado. Quando viu o perfeito estado do
homem quase desmaiou de raiva. Saiu do hospital retado, nem teve a cortesia de
desejar “falsas” melhoras e agradecer a Deus pela boa sorte do colega de chapa.
Sua esposa teve que enterrar a ceia da posse discretamente, ficaria chato se
alguém soubesse que eles desejavam o pior para o prefeito. Mas como nada fica
escondido, ele acabou sabendo. Como era um homem de paz e bem humorado deixou
aquilo pra lá, mas sua mulher já de olho na prefeitura e sendo de uma família
que achava que quem deseja o mal merece o pior, não perdeu tempo, mandou acabar
com o afilhado de Getulio. Mataram o homem no meio da praça, foram mais de sete
peixeiradas, tinha pra mais de vinte testemunhas, mas quando souberam de quem
se tratava, sumiram todas,ia ficar como crime sem solução. Mas isso não podia,
o vice-prefeito da cidade morrer e ninguém saber o motivo. E foi numa reunião entre os dirigentes da
cidade que ficou decidido que aquilo tinha sido suicídio, arrumaram até uma
testemunha que viu o vice-prefeito enfiar as setepeixeiradas pelo corpo (a
maioria no peito).
O prefeito pra limpar a suspeita de
assassinato praticado por ordem da primeira-dama simulou até uma carta. Como o
homem era fanático por tudo que Getúlio Vargas fez, falou e escreveu, ele
aproveitou a deixa pra citar alguma coisa do ex-presidente, assim daria mais
autenticidade à suposta carta achada no bolso do paletó do defunto. No enterro,
antes de baixar o caixão o prefeito meteu a mão no bolso, pegou a carta e
mostrou pra todos os presentes, falou que se tratava da última mensagem do
querido vice-prefeito: “Vou ler em voz alta pra que todos guardem as palavras
do ‘nosso’ afilhado de Getúlio”, e começou a ler a carta – “Como meu padrinho
Getúlio, deixo a prefeitura pra entrar na História”. Um assessor cochichou no
ouvido do prefeito: “Mas o presidentemorreu com um tiro no peito”. O prefeito
arrumou o nó da gravata, deu uma tossida e corrigiu o equívoco como se
estivesse lendo – “A única diferença do nosso fim é que ele usou o revólver, e
eu como nordestino retado vou usar peixeira que dói mais”. O assessor tornou a
intervir e cochichou de novo: “Esse bilhete que você inventou tá muito
violento, vê se manera no final, se não o Sr. vai ficar mal com o povo”. Aí
então o prefeito encurtou o bilhete de três paginas – “Morro satisfeito, pois além
de entrar pra História, deixo a prefeitura em boas mãos. Não quero que ninguém
suspeite de nada, deixei a carta já pra deixar claro que foi suicídio.
Assinado, o afilhado de Getúlio, seu criado”.
Nando da
Costa Lima


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