domingo, 27 de dezembro de 2015

Comentando o livro "A MARCHA DA INSENSATEZ" De Tróia ao Vietnam - de Barbara W. Tuchman



Ricardo De Benedictis​

Comentando um dos maiores livros no gênero -
'A MARCHA DA INSENSATEZ', da historiadora norte-americana BARBARA W. TUCHMAN, cujo conteúdo deveria nortear a vida dos dirigentes políticos do Planeta Terra. Quem sabe, a par dos exemplos históricos narrados nesta completíssima obra, o Homem pudesse entender um pouco mais de humanismo, atacando de frente sua ambição desmesurada de PODER E DINHEIRO.
Aqui há relatos, cuja riquíssima bibliografia não deixa qualquer sombra de dúvidas e jamais foram contestados, ela que, falecida em 1989, foi considerada pela crítica a “mais bem-sucedida historiadora dos Estados Unidos e também a melhor”.
Se o leitor tiver um tempinho, sugiro que copie o resumo desta obra magnífica e guarde em um arquivo do Word como fiz, logo que terminei a leitura, copiando letra por letra, todas as palavras e frases contidas nas muitas páginas do livro, uma espécie de bíblia sagrada para a história do homem, até mesmo antes da era cristã ou no seu limiar. Vale a pena ler, caros amigos. A insensatez tem levado o Planeta Terra a grandes GUERRAS, conflitos, convulsões, cataclismas e desastres, tudo isso causado pela ação deletéria dos humanos que, na sua ambição desmedida não pensam duas vezes entre destruir para TER, ao invés de investir para SER e preservar para o seu BEM-ESTAR! Leia até o final e tire suas conclusões! 


Inicialmente, aconselharia os políticos brasileiros a atentarem para os grandes erros cometidos pelos líderes da história mundial. Sem conhecer os erros do passado, como os dirigentes do presente deveriam se comportar? É o caso da presidente Dilma, do ex-presidente Lula e de outros políticos pensarem no país que queremos para o amanhã. De que adianta um país em crise permanente? A quem a crise favorece? São perguntas que merecem respostas. E que respostas seriam plausíveis? Pois bem.Estamos diante de um compêndio histórico da maior relevância e que deveria ser o ‘livro de cabeceira’ dos nossos dirigentes. Infelizmente, caberia aos insensatos atos do STF, do Executivo e do Legislativo, cujos titulares deveriam parar para refletir, neste limiar do ano 2016. Quando o ministro Barroso deu uma guinada e esqueceu seu juramento à Carta Magna, sem atentar que vivemos uma crise ética, moral, de um momento terrível da vida nacional. O que importa é o nosso amanhã. E se é o amanhã que importa, vitórias e derrotas do grupo a ou b, são menores, em relação ao que o Brasil necessita para seguir seu caminho. Se esse pessoal mirasse na experiência, nos ensinamentos já consolidados, dos erros históricos vivenciados pelos países do mundo e pela história, quem sabe, suas decisões seriam melhores e sem comprometimentos de ordem política de quem os colocou, com méritos ou sem méritos nos altos escalões decisórios da nossa triste realidade. Atenção, senhores, nenhum de nós deve ser o coveiro do Brasil. Vamos em frente, vamos tratar as questões nacionais com imparcialidade. Pensem no Brasil de amanhã, sem querer ‘pagar’ pelos cargos que ocupam, mas pensando exclusivamente no bem comum, de toda a Nação Brasileira! E, infelizmente, não é isso que estamos vivenciando. Que os ensinamentos de   BARBARA W. TUCHMAN, sirvam para que todos reflitam em que despenhadeiro querem colocar o país. O povo não deve pagar pela insensatez dos nossos dirigentes, nos poderes mais cruciais da República.


BARBARA W. TUCHMAN obteve renome internacional com seu clássico Ca­nhôes de agosto (The guns of August), laureado com o Prêmio Pulitzer. Es­creveu inúmeros livros e ensaios de história que, igualmente, tiveram am­pla repercussão e foram traduzidos para 13 idiomas: The Zimmermonn te­Iegram, The proud tower, StiIweIl and lhe American experience in China (outro Prêmio Pulitzer), Practicing history, e este notável A marcha do in­sensatez, um bestseller mundial. Barbara Tuchman vivia na pequena ci­dade de Cos Cob, vizinha a Greenwich (Connecticut), sendo considerada pela crítica a “mais bem-sucedida historiadora dos Estados Unidos e tam­bém a melhor”. Faleceu em 6 de fevereiro de 1989.




A MARCHA DA INSENSATEZ
De Tróia ao Vietnam
Barbara W. Tuchman


CAPITULO UM


EM BUSCA DE
UMA POLÍTICA CONTRÁRIA AOS
PRÓPRIOS INTERESSES

Fenômeno observável ao longo da História, que não se atém a lugares ou ~ períodos, tem sido o da busca, pelos governos, de políticas contrárias aos seus próprios interesses. Nossa espécie, ao que tudo indica, quando se trata de governar, apresenta resultados bem menos brilhantes do que os obtidos em outras atividades humanas. Nessa esfera, a sabedoria — que pode ser definida como exercício de julgamento atuando à base de experiência, senso comum e informações disponíveis — é menos operativa e mais decepcionante do que seria de se esperar. Por que os homens com poder de decisão política tão freqüentemente agem de forma contrária àquela apontada pela razão e que os próprios interesses em jogo sugerem? Por que o processo mental da inteligência, também freqüentemente, parece não funcionar?
Por que — começando pelo princípio — os dirigentes de Tróia per­mitiram o ingresso dentro de seus muros daquele cavalo de madeira extre­mamente suspeito, não obstante terem todos os motivos para imaginarem tratar-se de um ardil por parte dos gregos? Por que sucessivos ministérios de Jorge III preferiram coagir ao invés de conciliar as colônias da Amé­rica, apesar de advertidos inúmeras vezes, por conselheiros diversos, de que os danos advindos de tal política seriam provavelmente maiores do que eventuais vantagens a serem assim obtidas? Por que Carlos XII, depois Napoleão, depois Hitler, em seqüência, invadiram a Rússia sem con­siderar os desastres sofridos pelos respectivos predecessores? Por que Montezuma, líder de um exército feroz e disposto à luta, numa cidade de 300.000 habitantes, sucumbiu passivamente a um bando de poucas cente­nas de invasores alienígenas, mesmo depois de os intrusos se terem reve­lado criaturas obviamente humanas, e não deuses? Por que Chiang Kai­shek recusou atenção às vozes que falavam em reformas ou bradavam seu alarme, até acordar com o país inteiramente fora de controle? Por que as nações importadoras de petróleo se engajaram na disputa dos suprimentos disponíveis quando uma frente unida firme, ante os exportadores, faria com que ganhassem o domínio da situação? Por que, em tempos recentes, os sindicatos britânicos, num espetáculo de puro desvario, aparentemente visavam a levar seu país à paralisia, dando impressão de que se julgavam separados da comunidade nacional? Por que empresários americanos in­sistem na tônica do “crescimento” quando tal coisa, provadamente, vem causando o esgotamento de três elementos básicos da vida em nosso pla­neta — terra, água, ar puro? (Embora sindicatos e empresários não repre­sentem governo, estritamente, eles integram situações governamentais.)
Em outros campos que não o de governo, o homem vem realizando maravilhas: inventou meios, no curso desta geração, de deixar o pla­neta e viajar à Lua; no passado, utilizou o vento e a eletricidade, transformou a rocha bruta em comoventes catedrais, obteve brocados de seda a partir da fiação produzida por um verme, derivou a força motriz do vapor d’água, controlou ou eliminou doenças, construiu instru­mentos musicais, fez recuar o mar do Norte criando terra em seu lugar, classificou as formas da Natureza, penetrou nos mistérios do cosmos. “En­quanto todas as demais ciências progrediram”, confessou John Adams, segundo presidente norte-americano, “a de governar marcou passo; está sendo praticada, hoje, apenas um pouco melhor do que há três ou quatro milênios.
O desgoverno é de quatro tipos, muitas vezes combinados: 1) ti­rania ou opressão, com tantos modelos históricos que se torna su­pérfluo comentarmos a respeito; 2) ambição desmedida, como a tenta­tiva de conquista da Sicília por Atenas na guerra do Peloponeso, e da In­glaterra por Felipe II com sua Invencível Armada, as duas vezes em que a Alemanha buscou dominar a Europa se autoproclamando “raça de se­nhores”, os pruridos do Japão por um império na Ásia; 3) incompetência ou decadência, de que são parâmetros o Império Romano em seus últimos dias, os derradeiros Romanov e a também derradeira dinastia imperial da China.
Finalmente, a quarta característica do desgoverno: insensatez ou obs­tinação. Nosso livro diz respeito a esse ângulo em manifestação específica, ou seja, naquele da execução de política adversa aos próprios interesses da comunidade ou nação envolvidas. O interesse de um grupo nacional tende a atingir o bem-estar social e todas as demais vantagens comunitá­rias; insensatez é política que, nesse enfoque, conduz a resultados contra-producentes.
Para os propósitos deste trabalho a qualificação de insensatez ou loucura política deve atender a três critérios simultâneos: em primeiro lugar, o de que foi percebida em seu próprio tempo e não retrospectiva­mente. Eis algo importante, pois toda política é determinada pelos mores de sua própria época. “Nada mais injusto”, como bem disse um historia­dor inglês, “do que julgar homens do passado pelas idéias do presente. Tudo aquilo que se possa dizer a respeito de moralidade e sabedoria po­lítica se constitui, certamente, em conceito passível de alteração”. Para evitarmos julgamentos baseados em valores de nosso tempo, devemos consultar a opinião da época sob exame e investigar apenas aqueles episódios cujo dano ao interesse coletivo foi assim reconhecido pelos coevos.
Segundo critério: um curso viável de ação alternativa deveria ser, en­tão, disponível. Para separar esse critério dos meros problemas de persona­lidade, terceiro critério entra em cena: a política em questão deve ter sido de grupo e não somente a de um governante isolado, tendo persistido além do termo temporal de qualquer dos dirigentes envolvidos. Desgoverno ao sabor de um soberano ou tirano isolados tem sido algo demasiado fre­qüente e pessoal e não se compadece com uma investigação generalizada. Governos coletivos ou sucessão de dirigentes no mesmo cargo, como no caso dos papas da Renascença, trazem à tona aspectos bem mais significa­tivos. (O episódio do Cavalo de Tróia, que examinaremos em seguida, faz exceção ao critério temporal, o de Roboão ao de grupo, mas todos eles são de tal sorte clássicos em seus contornos, e ocorreram tão nos albores da história conhecida dos governos, que servem para ilustrar como o fenômeno da loucura política deitou fundas raízes.)
O surgímento da insensatez independe de época ou lugar; é intempo­ral, universal, embora hábitos e crenças de eras e regiões específicas deter­minem a forma de que se revestirá. Não guarda relação com o tipo de regime em vigor: monarquia, oligarquia ou democracia produzem-na in­diferentemente. Tampouco revela-se peculiar a uma classe ou nação. O proletariado, tal como se fez representar nos governos comunistas, fun­ciona não mais racional ou efetivamente, se comparado à classe média no poder, como vem sendo demonstrado de forma notável pela história recente. Mao Tsé-tung pode ser admirado por muitos motivos; mas “O Grande Salto em Direção ao Futuro”, com uma fábrica de aço em cada esquina e a “Revolução Cultural” foram exercícios de insensatez que prejudicaram gravemente o progresso e a estabilidade da China, para não men­cionarmos os danos à reputação do próprio dirigente. As conquistas do proletariado soviético no poder dificilmente podem ser consideradas e efeito de uma ação esclarecida, embora após sessenta anos de controle deva ser reconhecida uma espécie de sucesso grosseiro. Se é verdade que os russos encontram-se materialmente melhores hoje do que dantes, o custo, em termos de crueldade e tirania, não foi menor — foi, provavel­mente, maior — que aquele sofrido sob o tacão dos czares.
A Revolução Francesa, protótipo máximo de um governo populista, reverteu com celeridade à autocracia coroada tão logo surgiu um adminis­trador hábil. Os regimes revolucionários dos jacobinos e do Diretório podetr ter reunido força suficiente para exterminar inimigos internos e derrota:
os externos, mas não lhes foi possível disciplinar suficientemente seus pró- prios seguidores visando à manutenção da ordem doméstica, instalação d administração sólida e coleta de tributos. A nova ordem foi graças
às campanhas militares de ionapane, que trouxe o butim das guerras externas para os cofres nacionais e, depois, revelou-se administrador ex­cepcional. Escolheu assessores no espírito do princípio “la carrière ouverte aux talents”, sendo, esses desejados talentos, os da inteligência, indústria, energia e disciplina. Isso tudo funcionou durante certo tempo, até que ele também, vítima clássica do orgulho desmedido, destruiu-se por praticar, em demasia, largas passadas políticas.
Seria de perguntar-se, a esta altura, por que estamos a cogitar de algo diferente quando se trata de governos, desde que insensatez e obstinação parecem inerentes ao indivíduo? As razões que nos induzem a tal preocupa­ção repousam na circunstância de que os governos têm mais impacto em maior número de pessoas do que a loucura individual, além de que eles devem obedecer a um dever maior no sentido de agir em consonância com a razão. Isso posto, e considerando-se que tais fatos são sabidos desde priscas eras, por que não ocorreu à espécie humana a tomada de precau­ções, erigindo salvaguardas contra o desvario político? Algumas tentativas foram feitas, a começar com a proposta de Platão para selecionar-se uma classe que seria treinada para exercer profissionalmente a governança. De acordo com seu projeto, a categoria dirigente em uma sociedade justa seria composta de homens capacitados na arte de dirigir, haurida em fontes racionais e sábias. Por reconhecer que, nos limites da seleção natural, tais indivíduos são raros, acreditava na necessidade de prepará-los de forma eugênica através de alimentação e condições especiais de vida e desenvol­vimento. Governar, ele dizia, era uma arte perfeitamente definida na qual a competência, como em qualquer outra profissão, somente poderia ser adquirida pelo estudo da disciplina e não de outra forma qualquer. A so­lução platônica, bela e inatingível, era a dos reis-filósofos. “Os filósofos devem tornar-se, reis em nossas cidades, ou aqueles que já são reis ou potentados necessitam buscar a sabedoria como verdadeiros filósofos e assim poder político e preparo intelectual estarão reunidos em uma só pessoa.” Até o dia em que isso venha a ser alcançado, ele acrescentava, “não haverá trégua para os problemas das cidades e tampouco para os da raça humana, penso”. Ë o que vem acontecendo.
Uma visão bitolada, levando a auto-enganar-se, é fator que desem­penha papel de grande significado nos governos. Consiste na abordagem de determinada situação à luz de noções fixas e preconceitos, enquanto são ignorados ou rejeitados quaisquer sinais em contrário. Faz com que as ações decorram obedientes ao desejo, sem que o agente se deixe dobrar pelos fatos. O epítome do que ficou dito pode ser encontrado na observa­ção feita por certo historiador a respeito de Felipe II da Espanha, detentor da mais perfeita visão d’antolhos, mesmo em comparação com outros soberanos: “Nenhum resultado demonstrativo do fracasso de sua política poderia abalar-lhe a crença na excelência básica de seus atos.”
Um caso clássico em ação foi o Plano 17, a estratégia francesa de 1914, concebido num ânimo de total envolvimento com a ofensiva. Con­centrou tudo no avanço francês em direção ao Reno, permanecendo o flan­co esquerdo virtualmente desguarnecido, algo somente justificável pela ina­movível certeza de que os alemães não poderiam contar com tropas sufi­cientes para estender sua invasão em torno e através da Bélgica ocidental e das províncias costeiras da França. Tal premissa estava assente, por sua vez, na concepção igualmente fixa de que os alemães jamais utilizariam reservas na linha de frente. Provas em contrário, que começavam a se configurar ante o Estado-Maior francês em 1913, tinham que ser, e foram, resolutamente ignoradas a fim de que nenhuma preocupação sobre uma possível invasão germânica através do oeste viesse permitir o desvio de forças destinadas à ofensiva direta dos franceses a oeste do Reno. Quando veio a guerra, afinal, os alemães usaram reservas na linha de frente e empreenderam a longa volta pelo oeste, com resultados que determinaram uma guerra prolongada e suas terríveis conseqüências para nosso século.
A visão bitolada consiste, também, na recusa ao benefício da ex­periência, uma característica em que os governantes do século XIV foram mestres supremos. Por mais freqüente e obviamente que a desvalori­zação da moeda desorganizasse a economia e eufurecesse o povo, os monarcas Valois, na França, buscavam esse recurso sempre que se encon­travam em apertos de caixa, até que se viram a braços com a insurreição da burguesia. Em tempos de guerra, atividade que se constituía no me­tier da classe dominante, a visão d’antolhos tornava-se algo conspícuo. Por mais que a tentativa de invasão de um país inimigo houvesse repre­sentado, antes, privações e até mesmo morte pela fome para os invasores, como nas expedições inglesas ao território francês durante a guerra dos Cem Anos, outras campanhas em que tais resultados seriam inevitáveis eram regularmente empreendidas.
Houve outro rei de Espanha, nos começos do século XVII, Felipe III, que, conforme consta, morreu de uma febre contraída quando o colo­caram muito próximo ao calor de um braseiro, ficando superaquecido e sem ajuda, porque o funcionário que tinha o dever de proceder à remoção das brasas, quando chamado, não foi encontrado. Neste século XX parece que a humanidade se aproxima de estágio similar em matéria de loucura suicida. Os exemplos, grosseiros e constantes, são de tal ordem que basta selecionar o mais gritante de todos: por que as superpotências não iniciam mútuo desarmamento dos meios de suicídio da espécie humana? Por que investimos toda nossa habilidade e recursos na corrida por superioridade em armas, que nunca poderá ser mantida por tempo longo, em lugar de buscarmos um modus vivendi com os antagonistas, ou seja, um modo de viver, não de morrer?
Ao longo de 2.500 anos, filósofos-políticos, de Platão e Aristóteles a Tomás de Aquino, Maquiavel, Hobbes, Locke, Rousseau, Jefferson, Ma­dison e Hamilton, Nietzsche e Marx, devotaram seu pensamento aos temas de ética, soberania, contrato social, direitos do homem, corrupção do po­der, equilíbrio entre liberdade e ordem. Poucos, exceto Maquiavel, que se preocupou com a arte de governar tal como é, não como deveria ser, abor­daram a corriqueira insensatez política, embora essa insensatez tenha-se constituído em problema crônico e avassalante. O Conde Axel Oxenstierna, chanceler da Suécia durante a turbulência da guerra dos Trinta Anos, no reinado do muito ativo Gustavo Adolfo, tinha ampla experiência quando disse, momentos antes de sua morte: “Veja, meu filho, como este mundo está governado sem sabedoria.

Considerando-se que o regime monárquico representou forma comum de governo por tão longo espaço temporal, foi, por isso mesmo, aquele que exibiu características de insensatez humana mais nítidas, assinaladas desde os mais antigos registros históricos. Roboão, rei de Israel, filho de Salomão, sucedeu a seu pai aos 41 anos de idade, aproximadamente em 930 a.C., cerca de um século antes de Homero compor o poema épico nacional de seu povo. Sem perda de tempo o novo rei cometeu o ato de insensatez que foi dividir sua nação, perdendo para sempre as dez tribos do norte, coletivamente denominadas Israel. Entre esses clãs havia muitos que se revelavam descontentes com as pesadas taxações impostas já ao tempo do Rei Salomão, sob forma de trabalho forçado, e durante seu rei­nado fizeram esforços para separar-se. Eles haviam captado o apoio de um dos generais de Salomão, Jeroboão, “um poderoso homem de valor”, que aceitou liderá-los na revolta baseado em certa profecia que o apontava para governante dessas dez tribos, depois da vitória. Jeová, falando atra­vés da voz de um tal Ahijá, o silonita, teve algum destaque no ajjaire, mas seu envolvimento, então e depois, foi algo obscuro: ao que parece, narradores, depois, enfeitaram o episódio, naturalmente concluindo que a mão do Senhor deveria fazer-se presente. Quando a rebelião fracassou, Jeroboão fugiu para o Egito, onde Shizak, rei daquele país, deu-lhe abrigo.
Tendo sido ungido na condição de rei, sem, qualquer dúvida, por Judá e Benjamim, as duas tribos meridionais, Roboão, perfeitamente ciente da inquietação em Israel, imediatamente viajou para Sechem, espécie de capi­tal do norte, visando a obter vassalagem de seu povo. Foi, ao invés disso, procurado por uma delegação de representantes de Israel que solicitou o abrandamento da ríspida servidão imposta pelo pai do novo rei, dizendo que, em troca, haveriam de servi-lo como súditos fiéis. Entre os delega­dos encontrava-se Jeroboão, vindo às carreiras do Egito tão logo teve co­nhecimento da morte de Salomão; essa presença certamente deveria ter advertido Roboão de que enfrentava um episódio crítico.
Contemporizando, Roboão pediu aos delegados que o deixassem a sós, retornando ao cabo de três dias, quando teria uma solução ao pedido feito. Nesse ínterim, iniciou consultas com os velhos membros do antigo conselho paterno que lhe disseram para aceder ao pedido do povo, tendo acrescentado que, se ele agisse de forma branda e graciosa, “falando boas palavras para esses enviados”, obteria, como resultado, “uma vassalagem perpétua”. Com as primeiras emoções do poder a correr-lhe no sangue, Roboão achou tal conselho dócil em demasia e voltou-se para “os jovens que o acompanhavam, seus companheiros de infância”. Estes, bem conhe­cendo a íntima disposição do soberano, e a exemplo dos conselheiros de todos os tempos, que desejam consolidar sua posição no “Oval Office”, ofereceram sugestões que sabiam bem mais viáveis. O rei não deveria fazer concessão de espécie alguma, dizendo, ao contrário, que a regra im­posta pelo pai se tornaria mais rígida ainda. Orquestraram palavras que se tornaram famosas, verdadeiro hino do déspota em qualquer lugar e tempo: “E vós lhes direis: onde meu pai vos colocou em dura servidão, tornarei tal obra ainda mais áspera. E enquanto meu pai vos marcava com as cicatrizes do açoite, marcarei vossas carnes com picadas de escor­piões.” Deliciado com fórmula de tamanha ferocidade, Roboão acolheu os delegados retornados ao fim do terceiro dia, dizendo-lhes “em voz de trovão”, palavra por palavra, o que seus jovens assessores haviam sugerido.
A hipótese de que os súditos não estivessem dispostos a aceitar tal solução obviamente parece não ter ocorrido ao rei em tempo hábil. Não sem razão, portanto, veio a merecer na história dos hebreus a qualificação de “modelo de insensatez”. Instantaneamente — tão de imediato que é de se supor tenham decidido, antes, o curso de ação a ser seguido em caso de fracasso das gestões — os homens de Israel declararam seu rom­pimento com a Casa de Davi, lançando um grito de batalha: “Para as tendas, ó Israel! Cuida de tua própria casa, Davi!”
Demonstrando tão escassa sensatez que seria de molde a espantar o próprio Conde Oxenstierna, Roboão adotou a providência mais provo­cativa possível em tal emergência. Chamou à sua presença Adoram, o homem que simbolizava o odiado trabalho escravo nas funções de coman­dante ou feitor da servidão, ordenando, aparentemente sem lhe propiciar meios para tanto, que estabelecesse sua autoridade. O povo matou Adoram a pedradas, seguindo-se a fuga do rei precipitado e insensato; fez voar sua carruagem até Jerusalém onde reuniu todos os guerreiros de Judá e Ben­jamim, disposto à guerra de reunificação. Por essa altura, o povo de Israel fizera de Jeroboão o seu rei. Ele reinou por vinte e dois anos e Roboão
durante dezessete, “e entre ambos houve guerra sem intervalo de um só dia”.
Essas lutas prolongadas enfraqueceram os dois Estados, encorajando regiões vassalas conquistadas por Davi a leste do Jordão — Moab, Edom, Amon e outras — a reconquistar sua independência, além de abrir cami­nho à invasão dos egípcios. O rei Shizak, “com enorme exército”, captu­rou fortins na fronteira e se aproximou de Jerusalém que Roboão salvou da conquista somente através do pagamento de tributo ao inimigo, com ouro tirado do Templo e do palácio real. Shizak penetrou também no território de Jeroboão, seu antigo aliado, alcançando Megido, mas por evidente falta de recursos indispensáveis ao estabelecimento de efetivo controle, acabou retornando ao Egito.
As doze tribos jamais se reunificaram. Ceifados pelo conflito, os dois Estados não conseguiram manter o orgulhoso império estabelecido por Davi e Salomão, que se estendia desde o norte da Síria até às. bordas do Egito, com domínio sobre as rotas internacionais das caravanas e acesso ao comércio externo através do mar Vermelho. Reduzidas e divididas, viram esgotar-se sua capacidade de resistência à agressão de vizinhos. Após duzentos anos de existência secionada,’ as dez tribos de Israel acabaram sob domínio dos assírios, em 722 a.C., e, de acordo com a política assíria para os povos dominados, foram expulsas de suas terras e dispersadas àforça, desaparecendo e se transformando, desde então, em uma das gran­des interrogações da História, fonte de perenes especulações.
O reino de Judá, contendo Jerusalém, continuou existindo como terra do povo judeu. Embora recuperando, em diversas épocas, grande parte do território setentrional, padeceu conquista, também, e exílio junto às águas da Babilônia, renascendo depois; passou ainda por guerras civis, domínio estrangeiro, rebeliões, nova conquista, outro remoto exílio e dispersão, opressão, gueto e massacre — mas não desapareceu. O curso alternativo que Roboão poderia ter adotado ao ser advertido pelos conselheiros mais idosos, mas que rejeitou de forma tão perfunctória, abriu, com essa longa vingança, uma cicatriz de 2.800 anos.
Igual em ruína, embora oposta nas causas, foi a insensatez que re­sultou na conquista do México. Ao passo que Roboão não é difícil de ser interpretado, o caso de Montezuma serve para demonstrar que a insensa­tez política nem sempre é explicável. Q Estado asteca, de que ele foi imperador de 1502 á 1520, era rico, sofisticado e predatório. Cercado por montanhas, num platô do interior (onde atualmente está localizada a ci­dade do México), sua capital contava com 60 mil construções sobre patama­res escalonados, diques e ilhotas de um lago, com casas de estuque, ruas e templos, brilhante em pompa e ornamentos, poderosa em armas. Suas colônias estendiam-se até a região leste da costa do golfo e oeste do Pacífico, abrangendo, todo o império, uma provável população de cinco milhões de almas. Os governantes astecas eram adiantados no domínio de artes, ciên­cias, agricultura, em contraste com a ferocidade da religião, cujos rituais de sacrifícios humanos não encontram paralelo em termos de crueldade sanguinária. Os exércitos astecas dirigiam campanhas anuais pela hinter­lândia em busca de trabalhadores-escravos e vítimas para os altares de sacrifício, que tomavam às tribos vizinhas, além do saque de alimentos de que pareciam eternamente carentes, ao tempo em que sujeitavam novas áreas ou puniam levantes. Nos primeiros tempos de seu governo Montezu­ma comandava pessoalmente essas razias e assim expandiu de forma no­tável as fronteiras do império.
A cultura asteca era escrava do conceito dos deuses: deuses-pássaros, deuses-serpentes, deuses-jaguares, Tlaloc, o deus da chuva, e o deus-sol, Tez­catlipoc, senhor da superfície terrestre, o “Tentador” que “sussurrava idéias de selvagismo na mente dos humanos”. O deus-fundador do Estado, Que­tzalcoatl, havia caído de seu pedestal e sumira nas águas orientais, embora seu retorno à terra fosse esperado, quando surgiriam, de um limbo anteci­patório, inúmeros presságios e aparições; ele viria como arauto da ruína do império.
Em 1519 um grupo de conquistadores espanhóis viera de Cuba sob o comando de Hernán Cortés e aportou em Vera Cruz, na costa do golfo do México. Nos vinte e cinco anos decorridos desde a descoberta, realizada por Colombo, das ilhas do Caribe, os invasores de Espanha haviam estabe­lecido um sistema que devastava as populações nativas: caso seus corpos não sobrevivessem ao regime de trabalho imposto pelos espanhóis, suas al­mas, na concepção cristã, seriam salvas. Vestidos com cotas de malha e ca­pacetes de metal, os conquistadores não albergavam propósitos de coloniza­ção nem pareciam dispostos a derrubar florestas e deitar lavouras; eram inquietos e ásperos aventureiros à cata de escravos e ouro. Cortés represen­ta o paradigma da espécie. Mais ou menos às turras com o governador de Cuba, ele se pôs em campo à testa de 600 homens, 17 cavalos, 10 peças de artilharia, ostensivamente em busca de comércio e exploração de terras novas, mas na realidade, como sua conduta posterior deixou flagrante, ansioso por glória e um domínio independente, prestando contas apenas à Coroa. Seu primeiro ato ao colocar pés em terra foi o de queimar os navios do transporte, tornando, assim, impossível uma retirada.
Informado pelos habitantes locais, que odiavam os astecas, da riqueza e poder da capital nativa, Cortés, com a maior parte de sua gente corajo­samente disposta, decidiu-se à conquista da grande cidade no coração do país. Embora de temperamento inquieto e audacioso, ele não era impru­dente: ao longo da jornada fez alianças com tribos hostis aos astecas, especialmente com Tlaxcala, o chefe rival do império. Enviou avisos antecipatórios dizendo-se embaixador de um rei estrangeiro, mas sem qualquer sugestão de que seria Quetzalcoatl reencarnado, hipótese inteiramente fora de questão em se tratando, como no caso, de um católico espanhol. Mar­chavam com seus próprios padres bem conspícuos a carregarem crucifixos e insígnias da Virgem, além da proclamação em alto e bom som de que buscariam trazer novos contingentes de almas para Cristo.
Ante as notícias do avanço, Montezuma reuniu os membros do conse­lho, alguns dos quais fortemente insistiram na necessidade de resistir aos estrangeiros pela força ou através de fraude, enquanto outros argüiram que, se os viajantes eram embaixadores de um príncipe ultramarino, seria reco­mendável dar-lhes boas-vindas e, caso se tratasse de criaturas sobrenatu­rais, como seus estranhos atributos indicavam, qualquer resistência não passaria de fútil tentativa. Suas faces “de cinza”, suas roupas “de pedra”, a chegada à costa em casas sobre as águas, com asas brancas, o fogo mágico a explodir de tubos, para matar à distância, os animais inacre­ditáveis nos quais os chefes vinham montados, tudo sugeria trato com o sobrenatural para um povo em que os deuses predominavam sobre tudo o mais. A idéia, porém, de que o chefe dos invasores poderia ser Quetzalcoatl parece ter sido um pavor que somente a Montezuma ocorreu.
Hesitante e apreensivo, ele adotou a pior providência que poderia ter escolhido nas circunstâncias: enviou esplêndidos presentes que demonstra­vam riqueza, e cartas concitando os estrangeiros a voltarem em seus passos, o que deixava a nu sua fraqueza. Carregados por uma centena de escra­vos, os presentes de jóias, têxteis, maravilhosos enfeites de plumagens e dois enormes pratos de prata e ouro, “grandes como rodas de carruagens”, excitaram a cobiça dos espanhóis. Por outro lado, as mensagens proibindo maior aproximação da capital, quase a implorar que retornassem para suas terras, numa linguagem branda destinada a não ofender embaixadores, ou deuses quiçá, pouco significavam em termos de dissuasores. Os espanhóis seguiram em frente.
Montezuma não moveu um dedo para detê-los ou barrar-lhes o cami­nho quando o grupo alcançou a cidade. Em lugar disso, foram saudados com cerimônia e conduzidos a aposentos no palácio e em outros nobres locais. O exército asteca, esperando nas colinas sinal para ataque, jamais foi chamado a entrar em ação, embora pudesse ter aniquilado os invasores cortando sua retirada através dos diques e levando os espanhóis a um estado de assédio em que acabariam por rendição à fome. Tais planos haviam sido urdidos, na verdade, mas foram revelados a Cortés por um intérprete traidor. Alertado, ele colocou Montezuma sob prisão domiciliar no próprio palácio, fazendo-o refém contra um ataque.
O          soberano de um povo de guerreiros, que suplantavam seus capto­res na proporção de mil por um, submeteu-se, entretanto. Por excesso de misticismo ou superstição, ele aparentemente se convenceu de que os es­panhóis eram, sem dúvida, enviados de Quetzalcoatl chegados para teste­munhar os estertores finais de seu império e, acreditando-se condenado irremissivelmente, nenhum esforço fez para enfrentar o destino.
As incessantes demandas dos visitantes por mais ouro e provisões de­monstravam obviamente serem eles humanos, em demasia até: seus cons­tantes rituais de adoração a um homem nu pregado em lenhos cruzados ou de uma dama com um menino nos braços, serviam para tornar claro que nada tinham a ver com Quetzalcoatl em relação a cujo culto, por sinal, manifestavam-se de forma supinamente hostil.
Quando, num espasmo de arrependimento, ou pressionado por alguém, Montezuma ordenou emboscar a guarda deixada por Cortés em Vera Cruz, seus homens mataram dois espanhóis, enviando a cabeça de um deles à capital, como prova. Sem pedir quaisquer explicações, sem parlamentar, Cortês imediatamente colocou o imperador em cadeias e forçou-o a entre­gar os perpetradores que foram queimados vivos junto aos portões do palácio, não olvidando a exigência de imenso tributo punitivo em ouro e jóias. Quaisquer ilusões acaso remanescentes de uma relação entre espa­nhóis e deuses desapareceram à vista da cabeça espanhola cortada.
Cacama, sobrinho de Montezuma, denunciou Cortês como assassino e ladrão e ameaçou iniciar uma revolta, porém Montezuma permaneceu si­lencioso e passivo. Tão confiante estava Cortés que, à notícia de uma força vinda de Cuba com a missão de prendê-lo, partiu ao seu encontro para ne­gociações deixando atrás de si apenas um grupo de ocupação, o qual, posteriormente, ainda mais enfureceu a população ao se dedicar a pôr abaixo os altares nativos além de exigir grandes estoques de alimentos. Tendo perdido sua autoridade, Montezuma não podia comandar a situação e tampouco diminuir a ira popular. No retorno de Cortês, os astecas, sob chefia de um irmão do imperador, iniciaram o levante. Os espanhóis, que não dispunham de mais que treze mosquetes entre os soldados, defende­ram-se com espadas, lanças e bestas. Com suas tochas incendiaram as casas. Debaixo de pressão, embora tivessem a vantagem do aço, trouxeram Montezuma para que determinasse a seus súditos o término das hostilida­des, mas quando ele apareceu o povo o apedrejou chamando-o de covarde e traidor. Levado de volta ao palácio, morreu três dias depois. Os habitan­tes da cidade recusaram-se a prestar-lhe pompas fúnebres. Os espanhóis evacuaram a capital durante a noite com perda de um terço de sua força e do butim.
Reagrupando seus aliados mexicanos, Cortês derrotou um exército asteca bem superior, em batalha de campo aberto, nos arredores da cidade. Com ajuda dos tlaxcalanos organizou um assédio apertado, cortou suprimen­tos de água potável e alimentos à cidade e gradualmente penetrou em seus muros, jogando os destroços dos edifícios no lago à medida que avan­çava. Em 13 de agosto de 1521 os remanescentes da antiga população, esfomeados e sem liderança, renderam-se. Os conquistadores aterraram o lago, construíram sua própria cidade sobre os escombros e impuseram novas leis ao México, atingindo astecas e antigos aliados, indiferentemente, durante os trezentos e cinqüenta anos seguintes.
Ninguém deve discutir crenças religiosas, especialmente quando se trata de uma cultura estranha, remota, não bem compreendida. Mas quando tais crenças se tornam uma ilusão mantida até mesmo contra as evidências naturais e a ponto de jogar por terra a independência de um povo, elas podem ser consideradas pura insensatez, com justiça. Pertencem à catego­ria de visão d’antolhos na variedade especial de mania religiosa. Jamais uma dessas manias causou maior devastação.
As loucuras políticas não significam, necessariamente, conseqüências negativas para todas as partes envolvidas. A Reforma, surgida da insensa­tez do papado renascentista, não passa por matéria de infortúnio para os protestantes. Os americanos jamais considerariam lamentável sua indepen­dência, fruto da insensatez dos ingleses. Embora a conquista da Espanha pelos mouros, que durou, para a maior parte do país, cerca de trezentos anos e, em áreas menores, oitocentos, possa ser classificada tanto de forma positiva quanto negativa em seus resultados,• dependendo da posição do analista, é fora de dúvida ter sido causada pela insensatez dos governantes espanhóis da época.
Esses dirigentes eram os visigodos que invadiram o Império Romano no século IV e pelos fins da quinta centúria se estabeleceram no controle da maior parte da Península Ibérica, dominando a população hispano­românica, bem superior em número. No curso de duzentos anos estiveram em querelas e freqüentemente em disputas armadas com seus súditos. Devido a incontido egoísmo personalista, comum nos soberanos daqueles idos, criaram apenas acrimônia tornando-se, afinal, vítimas do que haviam semeado. Essa hostilidade foi aguçada por animosidade religiosa, desde que os habitantes locais eram católicos do rito romano ao passo que os visi­godos pertenciam à seita ariana. Disputas posteriores surgiram em torno do método para selecionar soberanos. A nobreza nativa tentou manter o princípio eletivo consuetudinârio, enquanto os reis, obedientes a seus pru­ridos dinásticos, estavam determinados a estabelecer e manter processo hereditário. Usaram, para tanto, de todos os recursos disponíveis — exílio ou execução, confisco de propriedades, tributações arbitrárias, distribuição desigual de terras — visando a eliminar rivais ou enfraquecer a oposição local. Esses procedimentos, como é óbvio, levaram os nobres a fomentar insurreições, enquanto a flor do ódio abria pétalas.
Nesse meio-tempo, através de bem mais forte organização e mais ativa intolerância religiosa, a Igreja romana e seus bispos de Espanha ganharam terreno e ao final do século VI conseguiram converter dois herdeiros do trono. O primeiro deles foi condenado à morte pelo próprio pai, mas o se­gundo, de nome Recaredo, reinou; finalmente, um governante consciente da necessidade de união nacional. Foi o primeiro dos godos a reconhecer que, para um rei hostilizado por dois grupos inimigos, seria insensatez continuar antagônico aos dois simultaneamente. Convencido de que a união jamais seria obtida sob o arianismo, Recaredo agiu energicamente contra seus antigos associados e proclamou o catolicismo religião oficial. Vários de seus sucessores igualmente envidaram esforços no sentido de aplacar os antigos adversários, chamando de volta banidos e restaurando suas propriedades, mas as divisões e tendências antagônicas já eram por de­mais vigorosas e eles tinham perdido influência para a Igreja, que se transformou, por obra deles próprios, em seu Cavalo de Tróia.
Confirmado no poder, o episcopado católico mergulhou fundo nas coisas do governo secular, proclamando suas leis, utilizando-lhe os poderes, dirigindo assembléias decisórias, legitimando usurpadores favorecidos e pro­movendo, fielmente, campanhas incessantes e normas punitivas contra tudo que fosse “não-cristão”, ou, em outras palavras, contra os judeus. Sob tal superfície moviam-se e persistiam as lealdades arianas; deboche e deca­dência afligiam a corte. Ativada por cabalas e conspiratas, usurpações, homicídios e levantes, a rotatividade dos reis durante o século VII foi visível, nenhum deles ocupando o trono além de dez anos.
No curso dessa centúnia, os muçulmanos, animados por uma nova reli­gião, explodiram em vertiginosa carreira de conquistas que se estenderam da Pérsia ao Egito e, por volta do ano 700, atingiram Marrocos, fronteiro à Espanha e dela separado pelas águas do estreito. Seus navios atacaram as costas espanholas; embora batido, o novo poder nas praias contíguas ofereceu aos grupos hostis à regra dos godos o prospecto sempre tentador de ajuda externa contra o inimigo interno. Não importa quantas vezes tenha sido repetida na História, essa solução desesperada sempre termina de uma mesma maneira, como os imperadores de Bizâncio aprenderam ao acolherem os turcos nas lutas contra a oposição doméstica: o poder con­vidado permanece no país e toma o controle da vida nacional.
Para os judeus espanhóis o tempo era chegado. Antiga minoria tole­rada, que havia chegado com os romanos, tendo prosperado como mer­cadores, eram agora evitados, perseguidos, sujeitos à conversão forçada, privados de direitos, propriedades, trabalho; até mesmo suas crianças lhes eram arrebatadas à força e entregues a cristãos proprietários de escravos. Ameaçados de extinção, fizeram contato com os mouros e lhes passaram *      Arianismo: Doutrina pregada por Ano (280-336), heresiarca de Alexandria, famoso em todo o mundo daqueles idos. Segundo ele, Cristo era um misto de homem e Deus. (Nota do tradutor.)
informações úteis através de correligionários do norte da África. Para eles, qualquer alternativa seria melhor que o domínio cristão. O ato decisivo veio, porém, do núcleo de discórdia existente na sociedade nacional. Em 710, através de conspiração, os nobres recusaram-se a reconhecer como rei o filho do último soberano; derrotaram-no e o retiraram do trono, elegendo, em seu lugar, um de seus pares, o Duque Rodrigo, o que lançou o país em cerradas disputas e confusões. O rei deposto e seus partidários atravessa­ram o estreito e com a doce ilusão de que os mouros gentilmente haveriam de recuperar o trono para eles, pediram sua assistência.
A invasão muçulmana de 711 abateu-se sobre um país que se dilace­rava. O exército de Rodrigo ofereceu medíocre resistência e os mouros ganharam terreno com sua força de 12 mil homens. Capturando cidade após cidade, estabeleceram delegados — em um caso entregaram a direção de certa cidade aos judeus — e seguiram avante. Dentro de sete anos ti­nham conquistado toda a Península Ibérica. A monarquia goda, que fra­cassou no desenvolver princípios de governo hábeis e até mesmo em obter fusão com seus súditos, caiu ante o assalto porque não conseguiu firmar raízes,


Nos idos sombrios entre a queda de Roma e o despertar medieval, os governos não conheceram teoria, estrutura ou instrumentalidade além do puro exercício da força do arbítrio. Como, entretanto, a desordem é a menos tolerável das condições sociais, o ato de governar começou a tomar forma na Idade Média, como função reconhecida, com reconhecidos prin­cípios, métodos, agências, parlamentos, burocracias. Adquiriu autoridade, mandatos, criou meios e capacidade, mas não cresceu visivelmente em sabedoria ou imunidade contra a insensatez. Não queremos com isso esta­belecer que cabeças coroadas e ministros sejam incapazes de governar com proveito e bem. Periodicamente surgem as exceções de forma efetiva e vigorosa, até mesmo benigna, ocasionalmente, e ainda mais ocasional­mente governos aparecem que se conduzem de maneira sábia. Tal como com a insensatez, essas eventualidades não guardam relação com tempo e espaço. Sólon de Atenas, talvez o mais sábio de quantos dirigentes vive­ram, foi dos primeiros a governar. E merece referência especial.
Escolhido arconte ou magistrado-chefe no século VI a.C., em época de inquietação política e social, Sólon foi incumbido de salvar o estado e conciliar as contradições. Ásperas leis relacionadas com as dívidas per­mitiam aos credores tomarem as terras como garantia de pagamento e até mesmo o devedor, para reduzi-lo ao trabalho escravo, o que vinha empo­brecendo e desesperando as camadas plebéias e alimentava crescente ânimo de insurreição. Não tendo participado do sistema opressivo instituído pelos ricos e como não apoiava, tampouco, a causa dos pobres, Sólon desfrutou da insólita vantagem de ser aceito por ambos os estratos: pelos ricos, de acordo com o que diz Plutarco, por ser homem de recursos e substância; pelos pobres, graças à sua honestidade. No corpo das leis que proclamou, não teve preocupações laterais, apenas a de fazer justiça, atuando com equanimidade em função dos interesses de poderosos e fracos, visando a construir um governo estável. Aboliu a servidão por débitos, estendeu o sufrágio aos plebeus, reformou a moeda para encorajar o comércio, criou normas legais relacionadas com heranças, direitos civis dos cidadãos, pena­lidades para os crimes e finalmente, buscando segurança para sua obra, exigiu do Conselho ateniense um juramento solene de que suas reformas seriam mantidas pelo prazo mínimo de dez anos.
Tomou, então, uma atitude extraordinária, possivelmente única entre todos quantos dirigiram Estados: comprou um navio e, sob pretexto de conhecer o mundo, ficou-se a viajar durante dez anos, em exílio voluntário. Equilibrado e justo como estadista, Sólon não era menos sábio como ho­mem. Poderia ter retido em mãos o poder supremo, aumentando sua auto­ridade ao nível de um tirano — e foi, na verdade, recriminado por não ter procedido assim — mas sabendo que peditórios sem fim para retirar ou modificar determinada lei só lhe trariam má-vontade desde que não aquiescesse, determinou-se a partir para que sua norma permanecesse in­tacta, pois os atenienses não poderiam rejeitar o corpo de leis sem sua san­ção. Seu gesto sugere que ausência de preponderante ambição pessoal de mistura com bom senso figuram entre os componentes básicos da sabedoria. Em anotações biográficas, escrevendo a respeito de si mesmo na terceira pessoa, Sólon disse, com humildade: “A cada dia ele se tornava mais velho e aprendia alguma coisa nova.
Governantes fortes e eficazes, embora sem possuir todas as qualida­des de Sólon, aparecem de tempos em tempos, com heróica estatura sobre os demais, transformados em torres visíveis na planície do tempo. Péricles presidiu Atenas em seu século áureo, ostentando julgamento sábio, mode­ração, elevado conceito. Roma possuiu Júlio César, homem de notáveis talentos de liderança, embora tenha levado seus oponentes a assassiná-lo, o que provavelmente não o recomenda como tão sábio quanto poderia ser. Mais tarde, sob os “bons imperadores” da dinastia antonina — Trajano e Adriano, organizadores e construtores; Antonjno Pio, o benevolente; Mar­co Aurélio, filósofo reverenciado — os cidadãos romanos desfrutaram de bom governo, prosperidade e respeito durante cerca de um século. Na In­glaterra, Alfredo o Grande repeliu invasores e patrocinou a união de seus compatriotas. Carlos Magno teve a habilidade de impor ordem a um uni­verso de elementos em conflito. Protegeu as artes da civilização em não menor escala do que as da guerra e gozou de supremo prestígio na Idade Média, só igualado, quatro centúrias depois, por Frederico II, apelidado “Stupor Mundi” ou Assombro do Mundo. Frederico envolveu-se com tudo:
artes, ciências, leis, poesia, universidades, cruzadas, parlamentos, guerras, política e inúmeras disputas com o papado, que, afinal, não obstante seus notáveis talentos, o levaram à frustração total. Lourenço de Médici, o Magnífico, promoveu a glória de Florença, mas devido às suas ambições di­násticas, minou as bases da república. Duas rainhas, Elizabeth 1 da In­glaterra e Maria Teresa da Áustria, foram ambas dirigentes hábeis, que souberam conduzir seus países a píncaros elevados.
Produto de uma nova nação, George Washington foi líder que brilhou entre os melhores. Enquanto Jefferson era mais cultivado, com mente de mais ampla percepção e incomparável inteligência, verdadeiro homem uni­versal, Washington possuía caráter firme e uma espécie de nobreza natural, que lhe permitia exercer predominância sobre outras pessoas, além de ser dotado de grande força interior e perseverança, responsáveis por seu êxito apesar do dilúvio de obstáculos com que se defrontou. Ele tornou possível tanto a vitória física da independência norte-americana como a sobrevivên­cia da rebelde e cambaleante república em seus anos iniciais.
Em volta dele, em extraordinária floração, o talento político se mul­tiplicou como se tocado pelos benefícios de um sol tropical. Apesar de todas as suas divergências e questiúnculas, os patriarcas fundadores mere­ceram a frase de Arthur M. Schlesinger: “A mais notável geração de homens públicos já surgida nos Estados Unidos e quiçá em qualquer outra nação.” São dignas de nota as qualidades que esse historiador lhes atri­bui: eles eram destemidos, de elevados princípios, profundamente versados no pensamento político de seu tempo e dos tempos antigos, astutos e prag­máticos. Não temiam novas experiências e — isso é significativo — “esta­vam convencidos da capacidade do homem em melhorar suas condições através do uso da inteligência”. Era essa uma marca característica da Idade da Razão, na qual se formaram e, embora o século XVIII tivesse a ten­dência de considerar os homens como sendo mais racionais do que realmente são, tais princípios permitiram que esses dirigentes oferecessem o melhor de si mesmos quando no governo.
Ser-nos-ia sumamente valioso sabermos a que atribuir o surgi­mento de tamanha explosão de talentos a partir de uma base nacional de apenas dois e meio milhões de habitantes. Schlesinger sugere alguns fatores constitutivos: ampla difusão educacional, oportunidades econômicas desafiadoras, mobilidade social, treinamento em autogovernança, tudo ten­dente a encorajar os cidadãos no cultivo, ao máximo, de suas aptidões políticas. Com a Igreja a declinar em prestígio, e os negócios, ciências e artes não oferecendo, ainda, terreno de aplicação competitiva, a arena política permanecia quase como objetivo único para homens de ener­gia e propósito. Talvez acima de tudo mais, as necessidades do mo­mento tenham sido responsáveis pela resposta colhida, essa oportunidade de construir um novo sistema político. O que poderia ser mais emocionan­te, capaz de colocar em ação homens enérgicos, dispostos à luta?
Jamais antes, ou desde então, foram investidos tantos e tamanhos raciocínios cuidadosos e razoáveis na formação de um sistema de governo. Nas revoluções francesa, russa e chinesa, houve excesso de ódio de classes e muito sangue acabou derramado sem permitir, ao fim, resultados justos e constituições permanentes. Durante dois séculos a fórmula norte-ameri­cana conseguiu sempre manter-se fiel sob pressão, sem enfraquecer o sis­tema ou tentando novo arranjo ao cabo de cada crise, ao contrário do ocorrido com Itália, Alemanha, França e Espanha. Sob os efeitos de uma incompetência acelerada, entretanto, isso poderá mudar, também na Amé­rica. Os sistemas sociais podem resistir a fortes doses de insensatez, se as circunstâncias são historicamente favoráveis, ou quando os atos insensatos acabam absorvidos por imensos recursos e se diluem no tamanho do país, como no caso dos Estados Unidos em seu período de expansão. Hoje em dia, porque já escasseiam os amortecedores, a insensatez é bem menos aceitável. Contudo, os patriarcas fundadores permanecem fenômeno para guardarmos em mente, capaz de encorajar nossas estimativas sobre as pos­sibilidades humanas, mesmo quando seus exemplos se tornam demasiado raros para servir de base a expectativas normais.
Entre lampejos de bons governos a insensatez marchou no seu coti­diano. No caso dos Bourbons de França, por exemplo, teve grande florescência.
Luís XIV é vulgarmente considerado monarca magistral, em grande parte porque as pessoas tendem a aceitar auto-retratos com bem-sucedida dramatização. Na realidade, ele exauriu as fontes humanas e econômicas de seu país mediante guerras incessantes e seu custo em termos de débito nacional, mortes, fome e doenças, impelindo a França para o colapso ine­xorável, tal como aconteceu duas gerações depois, com a deposição da monarquia absoluta, raison d’être dos Bourbons. Visto a essa luz, Luís XIV é o epítome daqueles que buscam uma política contrária aos próprios interesses. Não foi ele, mas a amante de seu sucessor, Madame de Pompa­dour, quem vaticinou em frase famosa: “Depois de nós, o dilúvio.”
Os historiadores são todos acordes em que o ato mais condenável e o erro mais clamoroso na carreira de Luís foi sua revogação do Edito de Nantes, em 1685, cancelando o decreto de tolerância de seu avô e rea­brindo as perseguições aos huguenotes. Não classificamos como insensatez perfeita a tal ato porquanto lhe faltou admoestação ou reprovação dos coevos, tendo sido saudado com grande entusiasmo e considerado, mesmo trinta anos após o funeral do rei, como uma de suas decisões mais dignas de encômios. Essa circunstância reforça, entretanto, o critério já exposto
de que a política insensata deve ser produto de um grupo e não apenas de um indivíduo. Mas o reconhecimento da insensatez não demorou tanto a ser feito. Algumas décadas depois Voltaire classificou tal ato como “uma das maiores calamidades já ocorridas em França”, com resultados “inteira­mente opostos àqueles que buscava”.
Como todas as loucuras políticas, essa estava condicionada pelas ati­tudes, crenças e correntes do tempo e tanto quanto em alguns casos, para não dizer em todos, foi providência inteiramente desnecessária. A força do cisma na velha religião e a ferocidade doutrinária do calvinismo encon­travam-se em curva descendente; os huguenotes, cujo número era pouco acima de dois milhões, cerca de um décimo da população, tinham provado ser leais e árduos trabalhadores, tão dedicados ao trabalho a ponto de gerar desconforto entre os católicos. Aí estava o nó da questão. Como os huguenotes guardavam apenas o sábado contra os mais de cem feriados por dias santos dos católicos, produziam melhor e tinham maior sucesso no comércio. Suas lojas e oficinas prosperavam a olhos vistos, considera­ção que estava por detrás das demandas católicas insistindo na repressão aos rivais. O pedido era justificado, porém, sob o argumento transcen­dental de que uma crença dissidente se constituía em desafio ao rei e que a abolição da liberdade de consciência — “essa mortífera liberdade”
serviria bem, tanto à nação como a Deus.
O          apelo calou no rei assim que ele se tornou mais autocrático, depois de sacudir de si o jugo inicialmente exercido pelo Cardeal Mazarino. E àmedida que tomava corpo o sentimento de autocracia, mais lhe enfadava a existência de uma seita dissidente representando fissura inaceitável no princípio de submissão à vontade real. “Uma só lei, um só rei, um só Deus”, eis seu conceito de Estado; depois de 25 anos de reinado tinha endurecidas as artérias políticas e se atrofiara sua capacidade em tolerar divisões. Cultivava a síndrome da “missão divina”, tantas vezes catastrófica para os governantes, convencido de que era vontade do Todo-Poderoso que eu seja Seu instrumento, fazendo aportar ao rebanho todos os extraviados que são, também, meus súditos”. Tinha, além disso, o móvel das razões po­líticas. Atento às inclinações católicas de Jaime II da Inglaterra, Luís começava a acreditar que o pêndulo da Europa estava oscilando em dire­ção à supremacia católica: poderia, portanto, auxiliar o movimento atra­vés de um gesto dramático contra os protestantes. Ademais, face a que­relas com o papa em torno de outros problemas, desejava mostrar-se como uma espécie de campeão da ortodoxia, reafirmando o antigo título francês de o mais cristão dos reis
A perseguição começou em 1681, antes da Revogação. Os serviços religiosos dos protestantes foram suspensos, escolas e igrejas fechadas, prestigiado o batismo católico, crianças eram separadas de suas famílias ao atingirem a idade de sete anos para serem criadas como católicos, pro­21
fissões e ocupações gradualmente restritas acabaram proibidas, funcionários huguenotes viram-se forçados a resignar; organizaram-se esquadrões cleri­cais de conversões, com prêmios em dinheiro para cada uma delas. Decreto após decreto discriminava e arrancava os huguenotes de suas próprias comunidades e da vida nacional.
As perseguições geram suas brutalidades características e o recurso à violência logo foi adotado, sendo o mais efetivo e maligno o das dra­gonnades, ou emprego dos dragões contra famílias huguenotes, encora­jando-os a procederem de maneira tão viciosa quanto possível e desejável. Notoriamente estúpidas e indisciplinadas, as tropas de dragões entregaram-se à carnificina, espancando e roubando proprietários, estuprando mulhe­res; esmagavam, despedaçavam, emporcalhavam tudo à vista enquanto as autoridades omitiam-se de reprimir esses meios estimuladores de con­versões. Conversões em massa debaixo de tais circunstâncias dificilmente poderiam ser aceitas como genuínas, causando ressentimento entre os ca­tólicos, porque envolviam a Igreja em perjúrio e sacrilégio. Comungantes forçados eram levados às missas e havia os que resistiam cuspindo ou pisoteando as hóstias, sendo imediatamente queimados vivos por terem profanado o sacramento.
Começou, pois, a emigração dos huguenotes — também em desafio aos editos que proibiam sua saída do país sob pena de sentença nas galés, se apanhados. Os pastores do credo, por outro lado, quando se recusavam a abjurar, eram forçados ao exílio, por temerem suas pregações em segredo, que encorajariam os conversos a se tornarem relapsos. Os teimosos conti­nuavam ministrando serviços religiosos: eram quebrados nas rodas de tor­tura surgindo, daí, mártires inspiradores de maior resistência nos fiéis.
Quando anunciaram ao rei conversões em massa — cerca de 60 mil em uma única região, no decurso de três dias — ele tomou a decisão de revogar o Edito de Nantes considerando-o desnecessário, uma vez que não mais havia huguenotes. Algumas dúvidas cresciam, ao tempo, quanto à prudência dessa medida. Nuni concílio que se realizou às vésperas da Revogação, o Delfim, possivelmente dando voz a preocupações que lhe teriam sido transmitidas em privado, advertiu o rei de que a revogação do Edito poderia causar revoltas e emigração maciça que repercutiria no comércio francês, mas parece que a sua foi a única intervenção em con­trário, sem dúvida por estar a salvo de represálias. Uma semana depois, aos 18 de outubro de 1685, a Revogação acabou formalmente decretada, sendo o ato saudado como “milagre de nosso tempo”. “Jamais ocorreu tamanha explosão de alegria”, escreveu o cáustico SaintSimon, que atirou essas farpas após a morte do rei: “Nunca se ouviu tal profusão de encô­mios... Tudo o que o rei escutava eram elogios...
Os efeitos malignos não se fizeram de rogados. Trabalhadores têxteis, fabricantes de papel, artesãos diversos, todos huguenotes, cujas técnicas tinham sido monopólio de França, levaram suas habilidades para o exte­rior, principalmente Inglaterra e Alemanha; banqueiros e mercadores car­regaram consigo seus capitais; impressores, livreiros, construtores de na­vios, advogados, médicos, muitos pastores, todos escaparam do país. No decurso de quatro anos 8 mil a 9 mil homens da Marinha e 10 mil a 12 mil do Exército, além de 500 a 600 oficiais, fugiram rumo aos Países-Baixos onde engrossaram as forças de Guilherme III, inimigo de Luís, logo dupla-mente inimigo ao se tornar rei da Inglaterra, três anos depois, substituindo Jaime II, destronado. A indústria da seda de Tours e Lyon ficou arrui­nada e algumas cidades importantes, como Reims e Rouen, perderam me­tade de seus artesãos especializados.
Houve exageros, a começar pelas virulentas censuras de Saint-Simon, quando bradou contra o “despovoamento” do reino que, segundo ele, seria da ordem de um quarto de seus antigos habitantes; isso, todavia, é inevi­tável sempre que são descobertas desvantagens depois de um aconteci­mento. Estima-se, atualmente, como número total de émigrés, em conta elástica, um montante entre 100 mil e 250 mil. Mas pouco importam nú­meros exatos: seu valor para os oponentes da França foi imediatamente reconhecido nos Estados protestantes. A Holanda lhes garantiu direito de cidadania imediata além de isenção de taxas durante três anos. Frederico Guilherme, o Eleitor de Brandemburgo (a futura Prússia), divulgou um decreto, sete dias depois da Revogação, convidando os huguenotes a virem para seus territórios onde as empresas industriais dos emigrantes viriam, afinal, contribuir decisivamente para o progresso de Berlim.
Análises recentes demonstraram que o dano econômico causado à França pela emigração dos huguenotes foi muito aumentado, tendo sido apenas um dos elementos na ruína maior derivada das guerras. Quanto aos prejuízos políticos, porém, não restam quaisquer dúvidas. O dilúvio de panfletos e sátiras divulgados pelos impressores huguenotes e seus amigos nas cidades onde se estabeleceram elevou severamente o antago­nismo ao universo francês. A coalizão protestante contra os franceses ficou bem mais fortalecida ao tempo em que Brandemburgo aliou-se à Holanda, juntando-se-lhes principados germânicos de menor expressão. Na França o movimento protestante acabou revigorado e o conflito com os católicos ainda mais azedou. A prolongada revolta dos huguenotes camisards nas Cevenas, região montanhosa meridional, gerou guerra repressiva que em muito enfraqueceu o Estado. Aí, e entre outras comunidades também cal­vinistas, tomou corpo uma base receptiva para a Revolução ainda por vir.
Bem mais profundo foi o descrédito lançado sobre o conceito de monarquia absoluta. A rejeição, pelos dissidentes, do poder do rei quanto à imposição de unidade religiosa, significou um vazamento no direito divino ligado à autoridade real, o que se irradiou, e foi ponto de conver­gência para desafios constitucionais do século seguinte. Quando Luís XIX morreu em 1715. depois de sobreviver a filho e neto, deixou por herança não a unidade nacional, que fora seu objetivo, mas visível e amargo dis­sentimento. Tendo reinado por 72 anos, em lugar de aumento da riqueza e poderio legou um Estado fraco, desorganizado, empobrecido. Jamais um soberano, voltado para si mesmo de forma tão característica, contrariou. como ele, seus próprios interesses.
A alternativa aceitável teria sido a de deixar os huguenotes em paz ou, ao menos, satisfazer os reclamos contra eles eriçados mediante decre­tos civis, em lugar do uso de força e do cometimento de atrocidades. Embora ministros, clero e povo aprovassem plenamente as persegui­ções, nenhuma razão digna desse nome resistiria a uma análise. A peculia­ridade de todo o a/faire residia nisto. essencialmente: não se tratava de medida necessária. Sublinha-se, aqui, duas características da insensatez política: freqüentemente ela não advém de grandes desígnios, e suas conseqüências, muitas vezes, acabam por surpreender. A insensatez, depois de vir à luz, tem o hábito de continuar persistindo em seus efeitos, poste­riormente. Com agudo embora inconsciente significado, um historiador francês escreveu a respeito do ato da Revogação: “Grandes desígnios são raros em política; o rei procedeu de forma empírica, seguidamente impul­stva.” Esse ponto de vista foi reforçado por fonte inesperada, quando, em estudo perceptivo, Ralph Waldo Emerson produziu o seguinte comentário:
“Ao analisarmos a História não devemos ser muito profundos, pois nas mais das vezes as causas estão bem à superfície.” Eis o fator superestimado usualmente pelos cientistas políticos ao discutirem a natureza do poder:
sempre tratam do assunto, mesmo em seus aspectos negativos, com imenso respeito. Não conseguem perceber o fenômeno, aqui e ali, como obra de homens às tontas, agindo de forma insensata, ignorante ou cruel, tal qual fazem pessoas comuns em circunstâncias banais. Os ardis e o impacto do poder nos levam a equívocos, revestindo seus titulares com qualidades acima das dimensões naturais. Despojado de sua tremenda peruca de cabe­los cacheados, de seus sapatos de salto alto, de seus arminhos, esse Rei Sol era homem sujeito a preconceitos, erros e impulsos — tal como você e eu.
O  último soberano francês a reinar, Carlos X, irmão de Luís XV1, que foi guilhotinado, e de seu breve sucessor Luís XVIII, pôs em jogo uma espécie de insensatez que pode ser classificada como “do tipo Hum­pty-Dumpty” *; tentou reinstalar uma estrutura liquidada, espatifada, buscando volver as páginas da História. Nesse processo, denominado reação ou contra-revolução, o direito reacionário tendia a restaurar privilégios e * Humpty-Dunpty: Personagem de história infantil que é representado por um ovo. (Nota do tradutor.) propriedades do velho regime conferindo-lhes um vigor de certa maneira inexistente antes.
Quando Carlos X. na idade de 67 anos ascendeu ao trono, em 1824, a França havia experimentado 35 anos das mudanças mais radicais já ocorridas na História até então, que iam da revolução total ao império napoleônico, a Waterloo, à restauração dos Bourbons. Luís XVIII, consi­derando impossível, ao tempo em que reinou, o cancelamento de todos os direitos, liberdades e reformas legais incorporados ao governo desde a maré revolucionária, aceitou uma constituição, embora jamais se tivesse acostumado à idéia de uma monarquia constitucional; seu irmão Carlos, entretanto, ia além: simplesmente não conseguia compreender tais mudan­ças. Tendo acompanhado o processo em andamento na Inglaterra, quando de seu exílio, Carlos afirmava que preferiria ser lenhador a rei dos ingle­ses. Não é de admirar, pois, que se transformasse na esperança dos emi­grados que retornaram com os Bourbons e desejavam o velho regime de volta, completo, com classes sociais, títulos, e especialmente suas proprie­dades confiscadas.
Na Assembléia Nacional eles eram representados pelos ultradireitistas, os quais, aliados aos frangalhos ainda existentes da extrema direita, for­mavam o partido mais forte. Tinham conseguido esse domínio mediante limitações ao direito de voto para as classes mais ricas utilizando o inte­ressante e criativo processo de reduzir as taxações de oponentes conheci­dos, de modo que se não pudessem situar na faixa de contribuintes até 300 francos, condição obrigatoriamente exigida para ser eleitor. Os qua­dros governamentais restringiram-se de forma similar. Os reacionários con­trolavam todos os postos ministeriais, tendo, inclusive, um extremista reli­gioso como ministro da Justiça, homem cujas idéias políticas, dizia-se en­tão, eram aperfeiçoadas na leitura regular do Apocalipse. Seus colegas impuseram rígidas leis de censura e normas elásticas de busca e apreensão; como primeira conquista criaram um fundo destinado a compensar apro­ximadamente 70 mil énligrés ou seus herdeiros a uma taxa anual de 1.377 francos. Não se constituía no suficiente para satisfazer os beneficiários, mas o bastante para enfurecer os burgueses cujos tributos pagavam essas dotações.
Os herdeiros da situação revolucionária e da corte de Napoleão não estavam dispostos a ceder espaço aos emigrantes e ao clero do velho regi­me; o descontentamento, por isso, elevou-se, embora ainda em tom surdo. Cercado por seus reacionários, o rei poderia ter completado seu governo mais ou menos confortavelmente se não tivesse, por excessiva tolice, bus­cado a própria queda. Carlos estava determinado a governar e, embora apenas ligeiramente dotado para a tarefa, do ponto de vista intelectual, possuía riquíssimas reservas daquela capacidade bourbônica de nada aprender e tampouco nada esquecer. Quando a oposição na Assembléia lhe soou um tanto bulhenta, ele aceitou o conselho de seus m1n1buu~ m.. sentido de dissolver a sessão; através de suborno, ameaças e outras pres­sões visando a manipular uma eleição aceitável, os realistas acabaram derrotados por quase dois votos a um. Recusando-se a aceitar o resultado como se fosse qualquer desamparado rei inglês, Carlos decretou nova dis­solução e, debaixo de ainda mais duras limitações aliadas a rígido sistema de censura, realizou outra eleição.
A imprensa abriu baterias, bradando por resistência. Enquanto o rei se entregava aos lazeres de uma caçada sem esperar conflito aberto e por isso não tendo providenciado apoio militar, o povo de Paris, como havia feito tantas vezes antes e desde então, construiu barricadas e entusiastica­mente dedicou-se a três dias de lutas nas ruas, denominados pelos fran­ceses les trois glorieuses. Deputados da oposição organizaram um go­verno provisório. Carlos abdicou e foi-se para aquele éden desprezível de monarquia limitada, além do Canal. Nenhuma grande tragédia, pois. O epi­sódio torna-se historicamente significativo apenas por representar um marco entre contra-revolução e a subseqüente monarquia “burguesa” de Luís-Feli­pe. Serve, porém, como mais um quadro ilustrativo na história da insen­satez, ao mostrar a sempre renovada futilidade de se tentar reconstruir um ovo quebrado, o que de forma alguma é exclusividade dos Bourbons.
Através da História têm sido inumeráveis os episódios de insensatez militar, mas estão fora dos objetivos deste ensaio. Dois dos mais expressi­vos, porém, envolvendo situações de guerra com os Estados Unidos, representam atitudes políticas de nível governamental. Um deles foi a decisão dos alemães em restabelecer a guerra submarina irrestrita, em 1916, e o outro, o ataque japonês a Pearl Harbour em 1941. Nos dois casos, vozes em contrário fizeram ouvir suas admonições relacionadas com o curso adotado, de maneira urgente e desesperada na Alemanha, discre­tamente mas com enorme carga de dúvida no Japão, sem sucesso nas duas oportunidades. A insensatez presente nesses exemplos pertence à catego­ria de auto-aprisionamento ao raciocínio do “não-dispomos-da-outra-alterna­tiva” e, também, à mais freqüente e fatal das ilusões, aquela que nos leva a subestimar o oponente.
Guerra submarina irrestrita significa afundamento, sem prévio avi­so, de navios mercantes encontrados em zonas de bloqueio declarado, sejam eles beligerantes ou neutros, estejam armados ou não. Rispidamente repelida pelos Estados Unidos, ao amparo do princípio que lhes era muito caro de que a neutralidade permitia liberdade de curso em todos os mares, a prática fora suspensa em 1915 depois do frenesi causado pelo afunda­mento do Lusitânia, não devido à fúria americana com ameaça de rom­pimento de relações, e ao antagonismo de outros países neutros, mas, principalmente, porque a Alemanha não possuía submarinos em número sufi­ciente para lhe assegurar efeitos decisivos, se forçasse a mão.
Por essa altura, na verdade em fins de 1914, depois de fracassada a ofensiva inicial destinada a pôr de joelhos Rússia ou França, os dirigentes alemães reconheceram a impossibilidade de vencer uma guerra contra três oponentes em aliança, caso eles se conservassem unidos: ao contrário, como disse o chefe do Estado-Maior ao chanceler, “parece mais provável que acabemos exaustos”.
Tornara-se necessária ação política destinada a obter paz em sepa­rado com a Rússia, mas isso havia falhado, como igualmente ocorreria com outras sondagens e aberturas a serem feitas para ou pela Alemanha com respeito à Bélgica, França e até mesmo Inglaterra nos dois anos seguintes. E tudo falhava por uma só razão: os termos da Alemanha eram punitivos em cada caso, colocando-se ela na posição de vitoriosa que exigia do adversário retirada pura e simples, enquanto bradava por anexações e indenizações. Oferecia sempre o porrete, jamais a cenoura do engodo; ob­viamente, nenhum dos oponentes sentia-se tentado a trair seus aliados em tais bases.
Antes do final de 1916 estavam ambos os lados quase completamente exaustos em recursos e soluções de índole militar, tendo perdido milhões de vidas em Verdun e no Somme para ganhos ou perdas medidos em jardas. A Alemanha curtia uma dieta de batatas ao tempo em que chamava às fileiras adolescentes de quinze anos de idade. Os aliados mantinham-se com meios também indigentes, sem sinais de vitória à vista — a menos que o poder intocado dos americanos viesse fortalecer seu esforço.
Durante esses dois anos, enquanto os estaleiros de Kiel empenhavam-se em produzir incansavelmente novos submarinos, a um ritmo de 200 por mês, o Supremo Comando batalhava nas conferências de alto nível pela renovação da campanha de torpedeamentos, enfrentando forte oposição por parte dos ministros civis. Resumindo o ponto de vista civil a propósito dos afundamentos indiscriminados, eles causariam, nas palavras do Chanceler Bethmann-Hollweg, “a inevitável presença americana no bloco inimigo”.
O Alto-Comando não negava tal possibilidade, desconsiderando-a, porém. Afirmava, isso sim, que se tornara indiscutível faltarem meios para que a Alemanha vencesse a guerra em terra apenas; seu objetivo era derrotar a Inglaterra já padecendo debaixo de escassez, cortando-lhe completamente os suprimentos que recebia por via marítima, antes que os Estados Unidos pudessem preparar, mobilizar, transportar suas tropas à Europa em nú­mero suficiente, capaz de alterar o panorama geral. Eles insistiam em que seu plano poderia completar-se dentro de três a quatro meses. Os almiran­tes faziam exposições com seus mapas e cartas marítimas provando quan­tas toneladas os submarinos poderiam afundar em dado período de tempo,até fazerem com que os britânicos “pulassem na rede como peixes em agonia”.
As vozes em contrário, a começar pela do chanceler, entendiam que a presença beligerante da América traria enorme ajuda financeira aos aliados, além de representar o erguimento do moral, permitindo-lhes re­sistir até o desembarque das tropas americanas; afora isso, teriam a utilização da tonelagem alemã internada nos portos da América e, eventual-mente, também a que existia em outros portos de países neutros. O Vice-Chanceler Karl Helfferich acreditava que soltar os submarinos levaria àruína”. O departamento do ministério do Exterior que lidava com os assuntos americanos cerrava fileiras com os demais opositores. Dois ban­queiros alemães de grande projeção retornaram às pressas de uma missão nos Estados Unidos expressamente no propósito de advertir contra o me­nosprezo às energias potenciais do povo norte-americano, que, eles disse­ram, uma vez convencido a lutar numa boa causa, saberia mobilizar forças e recursos em escala inimaginável.
De todos os dissuasores o que mais se empenhava era o embaixador alemão em Washington, Conde von Bernstorff; sua origem e formação alheias à índole prussiana libertaram-no de muitas das ilusões de seus pares. Bem ilustrado na realidade americana, Bernstorff reiterou a seu governo por diversas vezes que a campanha submarina despertaria a beli­gerância da América, levando a Alemanha a perder a guerra. À medida que aumentava a insistência militar, ele mais tornava ao assunto em cada uma de suas mensagens, buscando evitar que o país adotasse um rumo que lhe soava fatal. Estava convencido de que a fórmula única para ser evitada a derrota seria suspender o estado de guerra através de media­ção visando a uma paz de compromisso, tal como o Presidente Wilson cuidava de propor. Bethmann revelou-se ansioso por ver adotado esse plano baseado na teoria de que se os aliados rejeitassem tal paz, como era pro­vável, enquanto a Alemanha, ao contrário, a aceitasse, ficaria livre o cami­nho para a guerra submarina indiscriminada, que poderia ser levada a termo sem provocar a beligerância americana.
O grupo belicista a bradar pelo emprego dos submarinos incluía os junkers e o círculo de cortesãos, juntamente com grupos expansionistas, partidos de direita e a maior parte do povo, contaminado pela propaganda e colocando sua fé nos submarinos como meio hábil de romper o bloqueio inglês de alimentos, levando o país, assim, à vitória. Umas poucas vozes dos desprezados social-democratas bradaram no Reichstag: “O povo não deseja a guerra submarina, quer apenas paz e pão! “, mas ninguém lhes prestou ouvidos, pois os cidadãos da Alemanha, por mais famintos que es­tivessem, permaneciam obedientes. O Kaiser Guilherme II, assaltado em­bora por muitas dúvidas, mas não desejando parecer menos truculento que seus comandados, juntou sua voz às deles.

A oferta de Wilson, em dezembro de 1916, para que os beligerantes negociassem uma “paz sem vitória”, foi rejeitada por ambos os lados. Nenhum deles estava disposto a aceitar um acordo sem ganho e indeniza­ções dos gastos de guerra, que pudessem justificar tantos sacrifícios de vidas e outros sofrimentos. A Alemanha não lutava pela manutenção do status quo, mas visava à hegemonia da Europa e a um maior império ultramarino. Desejava, em lugar da paz de mediação, uma paz ditada, e não tinha a menor intenção, como deixou expresso o ministro do exterior Arthur Zimmermann, de “correr o risco de vir a ser despojada daquilo que buscamos ganhar com a guerra” através dos ofícios de um mediador. Qualquer negócio que viesse a requerer renúncias e indenizações por parte da Alemanha, única espécie de acordo que os aliados aceitariam, significa­ria o fim dos Hohenzollern e das classes então no poder. Eles igualmente necessitavam que alguém pagasse pela guerra, ou, então, iriam à bancarrota. Uma paz sem vitória representaria não apenas o fim dos sonhos de do­mínio como, ainda, requereria enormes taxas destinadas a pagar os anos de conflito que nada haviam produzido em matéria de receita. Seria a revolução, em suma. Para o trono, a casta militar, os grandes proprietários de terras, industriais e barões do comércio, somente uma guerra com lucros permitia esperança de sobrevivência no poder.
A decisão foi adotada numa conferência entre Kaiser, Alto-Comando e chanceler, aos 9 de janeiro de 1917. O chefe do Estado-Maior Naval, Almirante von Holtzendorff, apresentou uma compilação com 200 páginas contendo estatísticas da tonelagem que entrava em portos britânicos, taxas de frete, espaços destinados às cargas, sistemas de racionamento, preços dos alimentos, comparações das colheitas dos últimos anos, e detalhes outros que iam até o consumo de calorias no breakfast dos ingleses; jurou que seus submarinos poderiam afundar 600 mil toneladas mensais, forçando assim a Inglaterra a capitular antes da próxima colheita. Disse ser essa a última oportunidade da Alemanha e não poderia vislumbrar outra maneira de vencer a guerra “de forma a garantir nosso futuro como potência mundial
Bethmann falou durante uma hora; ordenou todos os argumentos já expendidos por conselheiros que haviam advertido representar a eventual participação dos Estados Unidos como beligerante adverso a derrota da Alemanha. Cenhos franzidos e murmúrios incessantes em volta da mesa acolhiam suas palavras. Ele sabia que a Marinha, por sua conta e risco, já havia despachado os submarinos. Lentamente foi fazendo concessões. Sim, na verdade, um número maior de submarinos oferecia maiores possibili­dades de sucesso do que anteriormente. . Sim, a última colheita tinha sido deficiente para os aliados... Por outro lado, a América. .
O Marechal-de-Campo von Hindenburg interrompeu-o para afirmar que o Exército cuidaria da América”, enquanto von Holtzendorff ofereceu sua
“garantia” de que “nenhum americano pisará no continente!” O melancólico chanceler acabou por render-se. “Ë óbvio”, disse, “que se o sucesso nos acena devemos seguir em frente”.
Ele não se demitiu. Um oficial que o encontrou mais tarde afundado em sua poltrona, olhar perdido no vácuo, indagou, alarmado, se tivera más notícias da frente. “Não”, respondeu-lhe Bethmann, “penso apenas no... jinis Germaniae’.
Nove meses antes, numa crise anterior sobre a guerra submarina, Kurt Riezler, assistente de Bethmann designado para atuar no Estado-Maior, che­gara a veredito similar quando escreveu em seu diário a entrada relativa ao dia 24 de abril de 1916: “A Alemanha é como uma pessoa petrificada à beira do abismo, mas desejando ardentemente jogar-se em suas profun­dezas.”
Os fatos concordaram com o prognóstico. Embora os afundamentos de navios tenham-se constituído em terrível experiência antes que o sis­tema de comboios viesse a funcionar, os britânicos, revigorados pela de­claração de guerra dos americanos, não capitularam. A despeito da garantia de von Holtzendorff, dois milhões de soldados dos Estados Unidos final­mente chegaram à Europa e, nos oito meses seguintes à primeira ofen­siva dessas tropas, a Alemanha rendeu-se.
Havia alternativa? Considerando-se a insistência na vitória e a recusa em admitir a realidade, provavelmente não. Todavia, um melhor curso poderia ter sido obtido caso aceita a proposta de Wilson, sabido de ante­mão que ela chegaria a ponto morto. Isso teria evitado ou certamente atrasado a adição do poderio americano ao do inimigo. Sem o concurso da América os aliados não teriam marchado para a vitória que, da mesma forma, estava além das possibilidades da Alemanha. Assim, ambos os lados teriam chegado a uma paz de exaustão mais ou menos igual. Para o mundo, as conseqüências dessa alternativa desprezada representariam funda altera­ção na História. Sem vencedor, reparações de guerra, sentimentos de culpa, sem Hitler e possivelmente sem Segunda Guerra Mundial.
Como acontece com tantas alternativas, entretanto, essa era psicolo­gicamente impossível. O caráter é o destino, como os gregos acreditavam. Os alemães estavam doutrinados para vencer objetivos mediante emprego de força, mas despreparados para ajustamentos. Eles não saberiam voltar atrás, olvidando seus sonhos de grandeza mesmo ao risco da derrota. O abismo imaginado por Riezler define-os perfeitamente.
Em 1941 o Japão enfrentou decisão semelhante. Seu plano de impé­rio, denominado Esfera de Co-prosperidade da Grande Ásia Oriental, que trazia em seu cerne a subjugação da China, correspondia à visão de um go­verno japonês alongando-se desde a Manchúria e através das Filipinas, Índias Holandesas, Malásia, Sião, Burma, até (e algumas vezes inclusive, dependendo da discrição do porta-voz) Austrália, Nova Zelândia e India. O apetite nipônico funcionava na razão inversa de seu tamanho. A fim de mover as forças indispensáveis a tão vasto empreendimento, tornava-se-lhes essencial o acesso às fontes de ferro, petróleo, borracha, arroz e outras matérias-primas, em quantidades muito superiores às suas reservas. O momento chegou quando irrompeu a guerra européia e as potências co­loniais do Ocidente, maiores oponentes japonesas na área, lutavam pela sobrevivência ou já se encontravam liquidadas — a França derrotada, a Holanda invadida, embora mantendo um governo no exílio, a Inglaterra devastada pela Luftwaffe e dispondo de apoucados meios para ações no outro lado do mundo.
A pedra no caminho dos japoneses eram os Estados Unidos que de forma persistente se recusavam a reconhecer suas progressivas conquistas na China e mostravam-se cada vez menos dispostos a fornecer materiais destinados a facilitar novas aventuras nipônicas. As atrocidades na China, o ataque à canhoneira Panay, de bandeira norte-americana, além de outras provocações, eram dados que pesavam na opinião pública da Amé­rica. Em 1940 o Japão concluiu o tratado Tripartite, tornando-se membro dos poderes do Eixo, e entrou na Indochina francesa quando a França sucumbiu na Europa. Os Estados Unidos, em represália, congelaram os ativos japoneses no país e embargaram as vendas de refugos de ferro, pe­tróleo e gasolina para aviação. Prolongadas negociações diplomáticas du­rante 1940 e 1941, no esforço de ser encontrado terreno para entendimen­to, resultaram em água de barrela. A despeito de sua vocação isolacionista, a América não concordava com o controle japonês sobre a China, enquanto o Japão não aceitava limitações ali ou restrições a sua liberdade de agir onde bem lhe aprouvesse no território asiático.
Líderes japoneses responsáveis, bem distintos dos militares extremis­tas e dos politiqueiros inflamados, não desejavam conflito aberto com os Estados Unidos. Queriam, apenas, manter os americanos aquiescentes, en­quanto progrediam na conquista do império oriental. Acreditavam possí­vel tal coisa com a intimidação implícita em uma aliança com o Eixo. Quando tais métodos pareceram tornar ainda mais áspera a não-concor­dância norte-americana, os japoneses, após análise perfunctória, ficaram convencidos de que os Estados Unidos lhes declarariam guerra na hipótese de se moverem rumo a seu primeiro objetivo, representado pelos recursos vitais das índias Holandesas. Como obter uma coisa sem provocar a outra, eis o grande dilema que os torturou durante 1940-1941.
Os estudos estratégicos demonstravam que, a fim de dominar as ín­dias e transportar suas matérias-primas para o Japão, seria necessário pro­teger o flanco de qualquer ameaça por ação naval dos Estados Unidos no sudoeste do Pacífico. O Almirante Yamamoto, comandante-em-chefe da  arquiteto do ataque a Pearl Harbour, sabia perfeita­mente que o Japão não tinha qualquer possibilidade de vitória final sobre os Estados Unidos. Chegou a dizer ao Premier Konoye: “Não guardo ilu­são alguma para depois de dois ou três anos de~ guerra     Entretanto, por julgar o ataque às índias Holandesas como uma espécie de “antecipação do estado de guerra com a América”, seu plano era o de forçar o destino, expulsando os Estados Unidos do meio do caminho mediante “um golpe decisivo”. Então, uma vez conquistado o sudoeste asiático, poderiam dis­por dos recursos indispensáveis a uma guerra prolongada destinada a im­por sua hegemonia sobre a Esfera de Co-prosperidade. Sendo assim, propôs que o Japão “atacasse duramente, com o objetivo de destruir a frota principal dos Estados Unidos logo no começo da guerra, de tal modo que o moral do povo e da Marinha norte-americana afundasse para não mais voltar à tona”. Essas curiosas lucubrações partiam de um homem que não era estranho à maneira de ser dos americanos, pois havia estudado em Harvard e servira como adido naval em Washington.
O planejamento para esse golpe de audácia suprema, visando a esma­gar a frota americana do Pacífico, em Pearl Harbour, começou em janeiro de 1941, enquanto a decisão final continuava objeto de agônicas transa­ções entre governo e forças armadas, prolongadas durante o ano. Os advo­gados do ataque antecipado acreditavam, mas não muito confiantemente, que isso faria com que os Estados Unidos perdessem toda e qualquer pos­sibilidade de interferência e, esperavam, os afastassem de beligerâncias fu­turas, também. Mas e se tal não acontecesse, indagavam aqueles que estavam em dúvida, o que deveriam contemplar, então? Argumentavam que o Japão não tinha condições de vencer uma guerra prolongada contra os Estados Unidos, que a vida do país estava sendo apostada como em um jogo de azar. Em nenhum momento dessas discussões silenciaram as vozes admonitórias. O primeiro-ministro, Príncipe Konoye, demitiu-se, co­mandantes mostravam-se relutantes, conselheiros hesitavam, o imperador andava taciturno. Quando ele perguntou se um ataque de surpresa signi­ficaria vitória tão expressiva como a ocorrida em Porto Arthur, durante a guerra russo-japonesa, o Almirante Nagano, chefe do Estado-Maior Naval replicou ser duvidoso que o Japão vencesse. (12 possível que, em se tra­tando de uma entrevista com o imperador, tais palavras correspondessem a qualquer ato de modéstia ritual, mas em momento tão grave a etiqueta provavelmente seria dispensada.)
Nessa atmosfera de dúvidas assim nítidas, por que foi aprovado o risco extremo? Em parte porque a exasperação resultante de haverem fa­lhado todos os esforços que buscavam intimidar levaram a um estado psicológico de tudo-ou-nada, com os conseqúentes lamentos dos civis de­sesperançados aos militares, exatamente como no caso de Bethmann. Além disso, as grandiosas expectativas dos poderes fascistas, para quem nenhuma conquista se afigurava impossível, devem ser tomadas em conta. O Japão, por seu turno, mobilizou um contingente militar de terrível vitalidade e que iria, na verdade, obter triunfos extraordinários de que são exemplos a tomada de Cingapura e o próprio ataque a Pearl Harbour, levando os Estados Unidos às fronteiras do pânico. Fundamentalmente, o motivo que induziu o Japão a correr tamanho risco foi o da escolha entre seguir avante com seu projeto ou recolher-se ao statu quo, uma tônica em tudo con­trária ao desejo de todos, que ninguém tinha ânimo em defender. As pres­sões de seu exército de agressão operando na China, juntamente com os agressores que tinham ficado em casa, levaram o Japão a aspirar por um império impossível, idéia da qual não mais se podia libertar. Tornara-se prisioneiro de ambições desmesuradas.
A estratégia alternativa teria sido a de marchar contra as Índias Ho­landesas, deixando os Estados Unidos intocados. Embora tal política criasse uma incógnita à retaguarda, incógnitas são sempre preferíveis a inimigos certos, com potencial imensamente superior àquele de que se dispõe.
Houve, no caso, estranho erro de julgamento. Numa época em que ao menos metade dos Estados Unidos era fortemente isolacionista, os japone­ses adotaram a única providência capaz de unir os americanos, motivando toda a nação para a guerra. De tal sorte era a divisão na América, nos meses anteriores a Pearl Harbour, que a renovação da lei relativa a um ano de serviço militar foi aprovada no Congresso com maioria de apenas um voto. Um voto! A verdade é que o Japão poderia ter tomado as índias Holandesas sem qualquer risco quanto à beligerância dos americanos. Nenhum ataque ao império colonial holandês, britânico ou dos franceses conduziria os Estados Unidos ao conflito armado.
O ataque ao território dos Estados Unidos era, assim, justamente o único ato capaz de se transformar em estopim. O Japão parece jamais ter considerado a idéia de que uma agressão a Pearl Harbour não iria enfra­quecer o moraX do pa{s, 1de ocupação governou por meio de oficiais de ligação junto aos ministros japoneses, em lugar de agir diretamente. O expurgo dos anti­gos dirigentes fez aflorar novos homens, talvez não essencialmente dife­rentes de seus predecessores, mas desejosos de acolher mudanças. Foram revistos os textos dos livros escolares e a figura do imperador alterada, de modo a se transformar em símbolo “nascido da vontade do povo, único senhor do poder soberano”.
Erros foram cometidos, especialmente no tocante à política militar. A natureza autoritária da sociedade japonesa retornou. Entretanto, no con­junto, o resultado final foi benéfico em lugar de obra de vingança, e pode ser apresentado como lembrete encorajador de que a sabedoria no governo é ainda uma flecha que permanece, raramente usada, na aljava do ser humano.
A mais rara das reviravoltas — a do governante que reconhe­ce não estar sua política servindo aos verdadeiros interesses e tem coragem para fazer uma mudança de 180 graus — aconteceu ainda ontem, historicamente falando. Foi quando o presidente Sadat abandonou a esté­ril inimizade com Israel e buscou, desafiando afrontas e ameaças de países vizinhos, um relacionamento em outras bases. Tanto em termos de risco como em vantagens isso representou um ato de grandeza, e no momento em que substituiu por coragem e bom senso o estúpido negativismo de idos anteriores, Sadat cresceu na História, uma figura solitária em nada diminuída na subseqüente tragédia de seu assassinato.
As páginas seguintes perseguem as trilhas de uma história mais fami­liar e persistente, lamentavelmente, para a. Humanidade. Não é o resultado de uma política o que permite julgá-la insensata. Todos os erros gover­namentais são contrários aos próprios interesses, a longo prazo, mas podem, temporariamente, fortalecer determinado regime. Só se qualificam como in­sensatez política quando, de forma irrecusável, têm persistência maligna, provadamente inoperante ou contraproducente. Parece-nos quase supérfluo aduzir que o presente ensaio se inspira na ubiqüidade desse problema em ‘á. nossos dias.
Marinha japonesa e arquiteto do ataque a Pearl Harbour, sabia perfeita­mente que o Japão não tinha qualquer possibilidade de vitória final sobre os Estados Unidos. Chegou a dizer ao Premier Konoye: “Não guardo ilu­são alguma para depois de dois ou três anos de guerra    Entretanto, por julgar o ataque às índias Holandesas como uma espécie de “antecipação do estado de guerra com a América”, seu plano era o de forçar o destino, expulsando os Estados Unidos do meio do caminho mediante “um golpe decisivo”. Então, uma vez conquistado o sudoeste asiático, poderiam dis­por dos recursos indispensáveis a uma guerra prolongada destinada a im­por sua hegemonia sobre a Esfera de Co-prosperidade. Sendo assim, propôs que o Japão “atacasse duramente, com o objetivo de destruir a frota principal dos Estados Unidos logo no começo da guerra, de tal modo que
o  moral do povo e da Marinha norte-americana afundasse para não mais voltar à tona”. Essas curiosas lucubrações partiam de um homem que não era estranho à maneira de ser dos americanos, pois havia estudado em Harvard e servira como adido naval em Washington.
O planejamento para esse golpe de audácia suprema, visando a esma­gar a frota americana do Pacífico, em Pearl Harbour, começou em janeiro de 1941, enquanto a decisão final continuava objeto de agônicas transa­ções entre governo e forças armadas, prolongadas durante o ano, Os advo­gados do ataque antecipado acreditavam, mas não muito confiantemente, que isso faria com que os Estados Unidos perdessem toda e qualquer pos­sibilidade de interferência e, esperavam, os afastassem de beligerâncias fu­turas, também. Mas e se tal não acontecesse, indagavam aqueles que estavam em dúvida, o que deveriam contemplar, então? Argumentavam que o Japão não tinha condições de vencer uma guerra prolongada contra os Estados Unidos, que a vida do país estava sendo apostada como em um jogo de azar. Em nenhum momento dessas discussões silenciaram as vozes admonitórias. O primeiro-ministro, Príncipe Konoye, demitiu-se, co­mandantes mostravam-se relutantes, conselheiros hesitavam, o imperador andava taciturno. Quando ele perguntou se um ataque de surpresa signi­ficaria vitória tão expressiva como a ocorrida em Porto Arthur, durante a guerra russo-japonesa, o Almirante Nagano, chefe do Estado-Maior Naval replicou ser duvidoso que o Japão vencesse. (E possível que, em se tra­tando de uma entrevista com o imperador, tais palavras correspondessem a qualquer ato de modéstia ritual, mas em momento tão grave a etiqueta provavelmente seria dispensada.)
Nessa atmosfera de dúvidas assim nítidas, por que foi aprovado o risco extremo? Em parte porque a exasperação resultante de haverem f a­lhado todos os esforços que buscavam intimidar levaram a um estado psicológico de tudo-ou-nada, com os conseqüentes lamentos dos civis de­sesperançados aos militares, exatamente como no caso de Bethmann. Além disso, as grandiosas expectativas dos poderes fascistas, para quem nenhuma conquista se afigurava impossível, devem ser tomadas em conta. O Japão, por seu turno, mobilizou um contingente militar de terrível vitalidade e que iria, na verdade, obter triunfos extraordinários de que são exemplos a tomada de Cingapura e o próprio ataque a Pearl Harbour, levando os Estados Unidos às fronteiras do pânico. Fundamentalmente, o motivo que induziu o Japão a correr tamanho risco foi o da escolha entre seguir avante com seu projeto ou recolher-se ao statu quo, uma tônica em tudo con­trária ao desejo de todos, que ninguém tinha ânimo em defender. As pres­sões de seu exército de agressão operando na China, juntamente com os agressores que tinham ficado em casa, levaram o Japão a aspirar por um império impossível, idéia da qual não mais se podia libertar. Tornara-se prisioneiro de ambições desmesuradas.
A estratégia alternativa teria sido a de marchar contra as Índias Ho­landesas, deixando os Estados Unidos intocados. Embora tal política criasse uma incógnita à retaguarda, incógnitas são sempre preferíveis a inimigos certos, com potencial imensamente superior àquele de que se dispõe.
Houve, no caso, estranho erro de julgamento. Numa época em que ao menos metade dos Estados Unidos era fortemente isolacionista, os japone­ses adotaram a única providência capaz de unir os americanos, motivando toda a nação para a guerra. De tal sorte era a divisão na América, nos meses anteriores a Pearl Harbour, que a renovação da lei relativa a um ano de serviço militar foi aprovada no Congresso com maioria de apenas um voto. Um voto! A verdade é que o Japão poderia ter tomado as índias Holandesas sem qualquer risco quanto à beligerância dos americanos. Nenhum ataque ao império colonial holandês, britânico ou dos franceses conduziria os Estados Unidos ao conflito armado.
O ataque ao território dos Estados Unidos era, assim, justamente o único ato capaz de se transformar em estopim. O Japão parece jamais ter considerado a idéia de que uma agressão a Pearl Harbour não iria enfra­quecer o moral do país, ao contrário, uniria a nação para o combate. Tão curioso vácuo perceptivo adveio daquilo que pode ser denominado ignorância cultural, componente freqüente da insensatez política. (Presente, embora, em ambos os exemplos ora tratados, no caso do Japão tornou-se crítico.) Julgando a América por seus padrões, os japoneses assumiram que o governo americano teria condicões de levar a nação à guerra tãó logo o desejasse, como seria possível no Japão, e na realidade ocorreu. Por igno­rância, equívoco ou imprudência desatada, brindaram seu oponente com o único golpe capaz de levá-lo à guerra de forma decidida e compacta.
Embora o Japão estivesse apenas começando uma guerra, ainda não envolvido nela profundamente, as demais circunstâncias eram espantosa­mente semelhantes às da Alemanha nos idos de 1916-1917. Os dirigentes, em ambos os exemplos, jogaram a vida da nação e de seu povo numa espé­cie de roleta que, a longo prazo, como muitos deles bem sabiam, significava jogo seguramente perdido. O impulso que os moveu emanava de incon­troláveis sonhos de dominação, delírios de grandeza, ganância.
Há um princípio a emergir nos casos retromencionados — o de que a insensatez política é filha do poder. Todos nós conhecemos, por infin­dáveis citações, o dito de Lorde Acton: o poder corrompe. Mas nem todos percebem que o poder alimenta a insensatez, que o poder de mando fre­qüentemente faz o pensamento falhar, que a responsabilidade no poder muitas vezes esmaece proporcionalmente ao seu exercício. A responsabili­dade preponderante no poder é a de governar tão razoavelmente quanto possível, em benefício do Estado e seus cidadãos. Entre os deveres nesse processo estão o de conservar-se bem informado, coletar essas informações, manter mente e julgamento abertos, resistir aos insidiosos encantamentos da visão bitolada. Se a inteligência é arejada o suficiente para perce­ber que determinada política, ao invés de satisfazer os interesses comu­nitários torna-se danosa, se existe autoconfiança bastante para reconhecer tal coisa e sabedoria capaz de reverter a situação, ter-se-á atingido um dos momentos elevados na arte de governar.
A política dos vencedores depois da Segunda Guerra Mundial, con­trastando com a do tratado de Versalhes e sua coorte de reparações, exi­gidas após a Primeira Guerra, representa exemplo de aprendizado haurido na experiência e de prática dessas lições em oportunidade que se não apresenta lá muito freqüentemente. A ocupação do Japão, de acordo com uma política desenvolvida depois de efetivada a vitória, delineou-se em Washington, foi aprovada pelos aliados e dirigida pelos americanos; repre­sentou notável exercício de autolimitação por parte dos vencedores, de inteligência política, reconstrução, mudanças positivas. Manter-se o impera­dor à testa do Estado japonês preveniu o caos político, criando bases de obediência ao exército de ocupação que se irradiavam de sua pessoa, além de gerar um sentimento de concordância fluindo de maneira extremamente dócil. Uma vez completados desarmamento, desmilítarização e julgamento de criminosos de guerra, destinados a definir responsabilidades por culpa, os objetivos se concentraram na democratização política e econômica, me­diante adoção de governo constitucional representativo, juntamente com desbaratamento dos cartéis e efetivação da reforma agrária. O poderio das grandes empresas industriais nipônicas provou ser intransigente, ao final, mas a democracia política, normalmente impossível de obter-se atra­vés de decretos, conquistável somente aos poucos no decorrer de arrastadas lutas seculares, acabou transferida com sucesso e adotada completamente. O exército de ocupação governou por meio de oficiais de ligação junto aos ministros japoneses, em lugar de agir diretamente. O expurgo dos anti­gos dirigentes fez aflorar novos homens, talvez não essencialmente dife­rentes de seus predecessores, mas desejosos de acolher mudanças. Foram revistas os textos dos livros escolares e a figura do imperador alterada, de modo a se transformar em símbolo “nascido da vontade do povo, único senhor do poder soberano
Erros foram cometidos, especialmente no tocante à política militar. A natureza autoritária da sociedade japonesa retornou. Entretanto, no con­junto, o resultado final foi benéfico em lugar de obra de vingança, e pode ser apresentado como lembrete encorajador de que a sabedoria no governo é ainda uma flecha que permanece, raramente usada, na aljava do ser humano.
A mais rara das reviravoltas — a do governante que reconhe­ce não estar sua política servindo aos verdadeiros interesses e tem coragem para fazer uma mudança de 180 graus — aconteceu ainda ontem, historicamente falando. Foi quando o presidente Sadat abandonou a esté­ril inimizade com Israel e buscou, desafiando afrontas e ameaças de países vizinhos, um relacionamento em outras bases. Tanto em termos de risco como em vantagens isso representou um ato de grandeza, e no momento em que substituiu por coragem e bom senso o estúpido negativismo de idas anteriores, Sadat cresceu na História, uma figura solitária em nada diminuída na subseqüente tragédia de seu assassinato.
As páginas seguintes perseguem as trilhas de uma história mais fami­liar e persistente, lamentavelmente, para a Humanidade. Não é o resultado de uma política o que permite julgá-la insensata. Todos os erros gover­namentais são contrários aos próprios interesses, a longo prazo, mas podem. temporariamente, fortalecer determinado regime. Só se qualificam como in­sensatez política quando, de forma irrecusável, têm persistência maligna, provadamente inoperante ou contraproducente. Parece-nos quase supérfluo aduzir que o presente ensaio se inspira na ubiqüidade desse problema em nossos dias.

Um comentário:

  1. Muito interessante e retrata fatos que realmente servem de lição, para quem quer ser aprendiz o que não é o caso de nossos políticos que preferem usar o método de gestão por tentativa e erro, principalmente porque não fez nenhuma força para que os recursos estivessem à disposição, uma vez que o estado é uma empresa improdutiva. Infelizmente é assim que sucede e sucedeu com nossos governantes.

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