sábado, 25 de janeiro de 2020

NANDO DA COSTA LIMA - CONTO

Coronelas, recados e rezadores (Ficção)

Nando da Costa Lima
João Profiro mandou chamar o cumpade Neca com um recado que chegou a assustar o cumpade rezadô. O vaqueiro nem desceu do burro:
— Acode, Seu Neca. Teu cumpade João tá nas últimas, só o senhor pra rezar a barriga dele pra mode ele poder evacuar. O home tá sem peidar e arrotar desde ontem, parece coisa feita.
— Mas eu já falei pra parar com aquela ignorância de mandar cozinhar uma galinha só pra ele e outra pro resto da casa. Vai acabar quebrando o bucho, aí não tem reza. Eu já tô perdendo a paciência!
— Mas dessa vez não foi galinha não, Seu Neca. Foi um bode…
— Ele comeu um bode sozinho? Se foi isso, tá fudido!
— Não, ele comeu só metade e deu a outra pra família.
Quando o amigo chegou, João já tinha queimado até vela, e o padre também já devia estar a caminho. O vigário era mais tranquilo, sempre ia dar a extrema unção já sabendo do que se tratava. Mas o cumpade Neca já tava cansado, era quase todo dia aquele homem chorando e pedindo por “rezação”. E olha que ele já tinha explicado pro amigo que homem de bem como ele, que tem o corpo fechado e lê o livro de São Cipriano, não morre assim. Antes ele apaixona pela ex-mulher (se tiver), ex-namoradas, até a mulher atual ele começa a tratar bem. E o cumpade João nunca teve essas manifestações. Seu Neca explicou que ele tava com 65, que não podia tá fazendo essas extravagâncias. Mesmo assim, benzeu a barriga do amigo, fez o mesmo com uma garrafa da legítima Jurubeba Leão do Norte e bebeu toda com o cumpade. Antes de terminarem, Profiro já estava apresentando melhoras.
Quando já estavam na segunda garrafa do vinho milagroso, o cumpade Profiro já tinha ido ao banheiro duas vezes. Fedeu a casa toda, mas isso o rezadô resolveu queimando chifre de boi com mastruz. Eles já estavam jogando baralho quando o padre chegou fingindo estar preocupado. O dono da casa foi logo acalmando:
— Tá tudo bem,Seu Vigário. Eu tomei umas duas Jurubebas e resolveu na hora…
          O rezadô ficou ressentido e tentou completar a resposta do cumpade:
— A bebida e a reza!
          O padre não gostou, mas deixou pra lá. Acabou entrando na jogatina depois que sentiu que Dona Carmela tava preparando um ensopado de leitoa. Alí agora só depois da meia noite. O padre depois da terceira começava a entregar tudo que ouvia no confessionário. Isso fazia o anfitrião dar risada e o seu cumpade ficava sabendo de tudo que se passava na cidade. Era só anotar as conversas do padre e a receita já ficava pronta pra no caso de procurarem ele. Era fácil: Dona Rosinete, por exemplo, confessou que tinha pulado a cerca com um sobrinho, mas que já tava arrependida. Quando ela procurou o rezadô, ele já tinha uns banhos pra afastar o amante e um incenso de cocô de capivara seco pra sufocar o ciúme do marido. Nesse espaço de tempo, ele procurava o amante e falava, como amigo, que ele devia desaparecer pois o ofendido já sabia e estava tramando pra mandar ele pro inferno… Assim ele foi pegando fama não só na cidade, mas em toda a região. E o dinheiro nessas horas entrava a galope: Seu Neca já era proprietário, engordava até boi… Graças à cachaça do padre e à gula do cumpade.
Mas agora ele já tava mais rico que o cumpade e achava uma ofensa ter que acordar nas carreiras pra ir benzer a barriga daquele filho da puta! E o pior que tinha mais meia dúzia que praticava o mesmo pecado, a gula! Era uma canseira. A esposa de Neca já estava morando na capital, não aguentava mais aquilo. Era quase todo dia, tinha que passar o ramo na barriga de um e tomar pelo menos uma garrafa de Jurubeba com o cliente. Pela Jurubeba a patroa tinha ficado, Neca só andava em ponto de bala. O problema era ter que acordar quase toda noite pra ir cuidar da barriga de guloso. Foi o jeito mudar pra Salvador. Aquilo tava matando o rezadô, era apaixonado pela mulher. E não era pra menos, Dona Wanderleia era uma mulher linda! E tava só em Salvador…
— Você sabe que em cidade pequena a diversão do povo é falar da vida dos outros.
— Não é assim também não, Maneca. Lá em Conquista mesmo, ninguém tá aí pra vida de ninguém.
— Mas Conquista não é roça. Aqui não, os fuxiquentos marcam o dia da feira pra falar de tudo que se passou na cidade na semana. Já têm até um ponto.
— E você vai ficar ligando pra esse bando de desocupado? Faz isso não, cumpade. Se você mudar pra Salvador, como é que a gente faz?
—  Eu venho de seis em seis meses e já deixo as garrafas do vinho composto rezada contra indigestão!
— É, pelo visto você já tá resolvido. Não adianta insistir.
— Eu cansei, cumpade. Não quero fazer mais nada, é muito cansativo. Se você soubesse a trabalheira que dá pra rezar uma “espinhela caída”, isso eu não faço mais nunca. Já jurei com a mão no livro de São Cipriano que nunca mais faço essas coisas….Tirando suas caixas de Jurubeba, cumpade Profidio, eu não rezo mais porra nenhuma. Já tô morrendo de saudade de Wanderleia.
— Tá certo, cumpade, coqui amansado com comprimido não pode dar solta…  
— O que o cumpade quis dizer com isso?
— Nada não, eu quis alertar ao amigo que a cumade é muito nova e bonita pra ficar só em Salvador.
— Só não, na casa da tia. Só de primo ela tem mais de 10 para tomar conta. Ninguém encosta!
— É, Neca. Nesse caso, você tem que ir o mais rápido possível…
— Mas cumpade, tudo você leva pro lado maldoso. Na família de Wanderleia, priimo é igual irmão.
— Tá bom, cumpadee. Mas é melhor você não perder tempo. Daqui pra capital é chão. Isso se você der sorte e pegar a Marinete até Poções, de lá só caminhão pode te levar. Ônibus só passa domingo, e só passa cheio.
          Passou umas duas horas, chegou um menino “nas pressa” e fala pro rezadô que a madrinha dele mandou ele ir lá agora rezar uma espinhela caída. O rezadô já tinha tomado todas e tava se queixando pro cumpade que a coisa mais cansativa era rezar uma espinhela caída… Foi aí que o rezadô desabafou, nem levou em conta que era um menino.
— Fala pra sua madrinha pra ir procurar rezadô na casa do caralho.
          E continuou a prosa, comendo e bebendo com o amigo, era uma espécie de despedida… Mas o dia não era dos melhores. No fim da tarde, o peru já tava assado e dividido quando chegaram dois homens armados e lá de fora chamaram o reazadô. Só fizeram bater palma… Profiro saiu pra ver quem era, os cabras se apresentaram e ele entrou apressando o amigo rezadô.
— É pra você, vai logo que é caso de vida ou morte.
— Vida ou morte merda nenhuma, já viu espinhela caída matar alguém?
— Mas foi aquela senhora que tem uma fazenda lá pras bandas de Belo Campo, é ela que tá precisando dos serviços do cumpade.
          Aí o rezadô amarelou e curou a cachaça na hora, foi logo arrumando a maleta. Pediu um paletó e uma gravata emprestados ao cumpade. Se ele não atendesse aquele pedido, seria realmente um caso de morte! Neca já saiu explicando pros jagunços:
— Foi o merda do menino que não soube dar o recado, se eu soubesse que era pra ela eu já tava lá. Cadê o meu burro que eu não tô vendo? Vocês esqueceram de trazer um animal pro rezadô se locomover?
— Não, senhor. A madrinha mandou o senhor tirar a botina, o contato do pé do rezador com a terra vai proteger o caminho e clarear as ideias. Ela disse que o senhor tem que chegar lá bem leve pra prestar bem os serviços.
          Neca Rezadô olhou pro sol, olhou pros jagunços, tirou a botina e falou:
— Pra uma mulher bondosa daquela eu vou até em Sompaulo andando, Belo Campo é um pulo.
          Quando eles chegaram na casa, a madrinha fez cara de quem tava com dó. Mandou os meninos colocarem água fresca numa bacia pro rezador aliviar o cansaço, deu até um refresco de tamarino pra ele matar a sede. Quando ele começou a se recuperar da viagem, ela falou no pé do ouvido dele:
— Depois da rezação, Cirilo Ranca Tôco vai acompanhar o senhor até a casa do caralho, eu tenho que ficar sabendo onde é…
Aí o rezadô caiu como se fosse desmaiar, mas continuou com os olhos abertos, só que não falou mais nada e não mexeu nem um dedo. Tava na cara que tinha travado de medo, ficou esquisito, o olhar perdido… Só gemia um pouco quando via a cara da dona da casa, um gemido agudo e sofrido que só parava quando ela saía do seu campo de visão.
Tiveram que acomodar o paciente numa carroça, a madrinha fez questão de que um dotô formado constatasse que foi doença e já mandasse um atestado junto ao enfermo. O doutor foi claro:
— Está constatado que foi um AVC.
E explicou pros presentes que AVC era um enfermidade no cérebro, pode acontecer com qualquer um. Não tinha nenhum hematoma que confirmasse agressão física. Os jagunços entregaram o pacote completo, paciente e atestado médico. A madrinha fez questão de explicar pros jagunços que deveriam reunir o pessoal da vila e dar o atestado pra uma pessoa ler em voz alta pro resto dos curiosos, ela tava farta de fuxicos e cansada de ser relacionada à violência. Só que o jagunço “Tô na Moita” quis impressionar uma das moças presentes e, antes que abrissem o envelope com o parecer médico, falou com ar de entendido:
— Pois é, pessoal. O rezadô comprovou que, nesse mundo, quem tem cú tem medo… Mas o dotô disse que foi “ABC no célebro”.
Isso evitou muita conversa à tôa. A maioria do pessoal nem ficou pra ouvir a leitura do exame. O povo já tinha achado um milagre ele ter voltado vivo depois de um recado desaforado daquele. Alguns chegaram a pensar que os cabras tinham cortado a língua e as juntas do indivíduo. A explicação de “Pedro Tô na Moita” foi providencial, ninguém mais ficou com dúvida.

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