UM GENTLEMAN À NOITE, CARRANCA, DE DIA
Série: Figuras da Bahia
Ricardo De Benedictis
Nos idos da década dos anos 1970, tive a oportunidade
de conhecer parte da sociedade de Feira de Santana, através de casual encontro
com um amigo poçõense de infância, Florisvaldo Brito, então gerente da Ag. Do
Banco Econômico S/A, uma das maiores instituições de crédito genuinamente
baiana e que tinha seus tentáculos espalhados pelo interior do Estado.
Talvez dois ou três anos mais velho que eu, o
Florisvaldo, quando criança, tinha um apelido sui generis: ‘boi sonso’. Era uma
boa praça, filho de dona Dadá, uma senhora muito bem-quista e recatada, que
residia na também apelidada Rua do Açude, se não me falha a memória, Rua
Raimundo Magalhães, quase na esquina que dava para a estrada Poções-Morrinhos-Canaã-Iguaí-Ibicuí-Ponto
do Astério.
Fazia anos que não encontrava Florisvaldo Brito e
fiquei feliz em vê-lo, bem de vida, gerindo a agência do Econômico. Era uma
sexta-feira e eu estava hospedado no Hotel Caroá, até então, o melhor da
cidade, com serviços e aposentos de um 4 estrelas, situado no centro de Feira,
uma cidade em plena ebulição e desenvolvimento, a 111 Kms. De Salvador.
Já fazia algum tempo que me hospedava em Feira, tendo
em vista que ainda morava no Rio de Janeiro, mas tinha que vir todos os meses à
ahia para tratar dos meus negócios e do meu trabalho principal, a revista
ATUALIDADES que editava e imprimia no Rio, dadas as facilidades gráficas e,
conseqüentemente, de qualidade de impressão, prazo de feitura e entrega, e
preço, condições que ainda não tínhamos em solo baiano. Lembro-me que as
primeiras edições de ATUALIDADES foram impressão na gráfica dos ‘Beneditinos’,
em Salvador, na Rua Paraíso, entre a Av. 7 de Setembro e o Quartel General da
6ª Região Militar.
Florisvaldo gostava muito da noite e dos restaurantes
mais badalados de Feira, e isso fazia parte da sua rotina como gerente de
Banco, sempre convidado e solicitado pelos clientes. E foi numa ocasião dessas
que nos encontramos. Eu estava numa mesa ampla, com alguns amigos recentes e
ele em outra mesa. E a música nos fez a aproximação. Sempre acompanhado do
inseparável violão, chamei a atenção dos convivas que se aproximaram e acabamos
por realizar uma grande farra que foi até a madrugada, regada a Scotch de
primeira linha. Imediatamente o reconheci e daí por diante passamos a nos ver
quase todos os dias e/ou noites, quando, por força do trabalho, passava dias e
mais dias em Feira.
Registrar que nessa mesma ocasião encontrei uma grande
amiga de Poções, filha do grande amigo e grande músico, Arnaldo Fagundes, de
saudosa memória. É bom situar que Feira de Santana era uma cidade boa de se
viver, tranqüila e próxima da Capital.
Neste mesmo período conheci uma figura que inspirou o
título deste conto. Ele era sócio de uma concessionária de veículos que ficava
quase em frente ao Hotel Samburá. E como meu carro fosse da marca da concessão
que ele representava, já o conhecia de vista, pois era em suas oficinas que
comprava peças e fazia reparos no veículo.
Numa noitada dessas, e é bom que se diga, Florisvaldo
Brito não se encontrava conosco, num restaurante muito badalado que ficava
próximo à Estação Rodoviária de Feira, quando a farra começou a ficar boa, eis
que esse cidadão levanta-se da sua cadeira e aproxima-se de nós, cantando com
uma bela voz, bem afinada e de entonação média, uma música que estava em voga,
que eu conhecia e acompanhei ao violão. E daí por diante, ele passou a ‘fazer
parte da roda’, como dizemos por aqui.
Em outras noitadas, vez por outra, ele chegava e fazia
parte do grupo, verdade se diga, uma ou outra pessoa o conhecia e ele sempre
alegre e solícito soltava a voz. E foi assim, meses e meses. Numa dessas ocasiões,
fui passar um fim de semana em Feira e precisei de reparar um pequeno defeito
que meu carro apresentou na estrada. Não era nada grave, mas o veículo
encontrava-se na garantia e fui até a concessionária para fazer o serviço.
Conversei com o atendente que me passou para a mecânica e fui informado que o
carro ficaria pronto no final da manhã. Quando me preparava para sair, vi a
figura de costas, sentado em sua carteira e fui cumprimentá-lo. “Olá, fulano,
como vai?” – Ele olhou-me carrancudo e acenou brevemente, voltando aos seus
afazeres. Achei estranho. Seria aquela figura um sósia do ‘alegro ragazzo’ das
noitadas? Perguntei a mim mesmo e tomei meu rumo para o hotel. Mais tarde,
informaram-me por telefone de que o serviço teria terminado; fui buscar o veículo
e já não encontrei o figurão. Antes de
sair, perguntei ao atendente se aquele senhor era fulano, que gostava de
freqüentar os restaurantes tais e tais, e ele confirmou: - “É ele, sim”. Ao que
eu comentei sobre o que se passava e o rapaz riu e disse: -“Ele é assim mesmo.
Todo mundo reclama porque quando ele bebe fica totalmente diferente do que ele
é, aqui na empresa.” E arrematou: - “Dizem que ele tem dupla personalidade!”.
É mole, amigos? O homem tinha dupla personalidade.
Quando bebe é um; sem beber, é ele mesmo. Qual dos dois eu realmente conhecia?
É um caso para se consultar o Freud.
Mais tarde, conversando com Florisvaldo Brito,
comentei o fato e ele deu uma gargalhada: -“ Você não sabia, Ricardo? Aquele
cara é gente boa, mas tem esse problema. Quando bebe!...”
Durma com uma barulho desses, amigos!
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