Intimidade
do copo
Nando da Costa Lima
Tem bêbado de todo tipo: chorão, valente,
mentiroso, fresco, rico; isto depende da personalidade de cada um. Todos eles
se parecem na hora de comprar fiado, se transformam em verdadeiros artistas,
fazem de tudo pra conseguir tomar “uma”. Teve um que empenhou a dentadura! Eles
fazem o impossível pra conseguir o objetivo, mas nem sempre conseguem...
Foi num
domingão ensolarado daqueles, que pra nós da terra do frio só dá vontade de
ficar deitado numa sombra. Bigode tava pra morrer de ressaca, mesmo assim
resolveu abrir o bar, tinha fechado na madrugada e aguentado prosa de tudo que
é tipo de bêbado. Tava num mau humor tão “brabo“ que foi o jeito tomar “uma”
pra encarar a freguesia, tinha acabado de colocar os espetos na churrasqueira quando
Arnóbio chegou. Tava numa bicicleta toda enfeitada, dessas que lembram uma
penteadeira de puta e que o pessoal do Sul, não sei por quê, chama de bicicleta
de baiano. Chegou bêbado, puxando conversa, cuspindo e falando alto: “Desce uma
cerveja e um tira-gosto, Biga”. Bigode não gostou muito da intimidade, mas como
era o primeiro freguês, deixou pra lá. Arnóbio continuou sua farra, tinha
aparecido até uma companhia pra lhe ajudar a gastar, no meio da festa ela já
estava desmaiada, sentada num engradado com a cabeça encostada no balcão. Mas
ele ainda estava firme, toda hora pedia uma coisa diferente: “Mais tira-gosto,
Biga”, “Vê outra gelada, Bigão”. O dono do bar já tava ficando retado com tanta
intimidade. Teve uma hora que entraram dois casais, comeram, beberam, mas na
hora de pagarem Arnóbio atravessou na frente e insistiu tanto que acabaram
deixando o prego pra ele acertar. E isso aconteceu com mais três fregueses,
tudo correndo por conta de Arnóbio, era pouca coisa, mas dava pra apertar. Ele
já tinha contado toda a sua vida pra Bigode enquanto este escutava o jogo pela
rádio, o homem tava uma pilha. As coisas pioraram quando o bebum lhe deu um
tapa nas costas e gritou: “Desce a saideira, Biguinha”. Aí ele não suportou.
Deu um murro no balcão e falou que ali ele só bebia se renovasse a conta. Então
Arnóbio começou a explicação: falou da crise, dos filhos, da mulher que tinha
fugido com um circo, da doença do pai... Lembrou até das prestações da “Buneca
Cobiçada” (apelido da bicicleta). Bigode quase não acreditou naquilo, pensou
que era brincadeira, colocou as duas mãos na cabeça e começou a imaginar o que
fazer com aquele sacana. A coisa que ele menos queria naquele domingo era se
aborrecer, tinha até rezado antes de se levantar, pediu a Deus pra não deixar
nem político nem prosa ruim de espécie alguma estragar seu dia, mas nem sempre
as coisas acontecem como a gente quer! Porém, talvez graças às orações, Bigode
conseguiu se controlar e permaneceu calado enquanto o bebum se desmanchava em
explicações. Depois de ler um ler um ABC de mais de duas horas de problemas,
chegou ao ponto que queria: dinheiro só no fim do mês, e ainda arrebatou: “Você
entende né, Biga?”. Bigode àquelas alturas já tinha engolido a raiva e em vez
dar um pau no trambiqueiro cliente, respondeu: “Tá bom, só que Biga vai guardar a
sua bicicleta e sua dentadura com vistinha de ouro, e quando você tiver ‘são’
vem buscar. Agora fica muito perigoso você sair com elas, tem muito assaltante
por aí”.
Arnóbio
apareceu no bar dias depois do porre, tava todo cerimonioso. Pagou a conta pra
“Seu” Bigode, pegou a “Buneca Cobiçada” e os dentes e nunca mais apareceu.
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