Dos melindres caatingueiros
Nando da Costa Lima

No
início do século XX, a caatinga era regida pelos coronéis e a jagunçada. Quando
ficava marrom, era difícil permanecer e sobreviver. E se a fome apertasse, se
comia até jegue, que é um bicho abençoado para o nordestino. Os outros
problemas eram esquecidos quando a fome imperava! Até os “cantadô” arribavam,
eles são como os passarinhos. Não aguentam tempo ruim. Se ficar, morre de papo
-seco ou fica igual frango com mal triste. Tocar moda de viola com o bucho
roncando deve ser muito ruim! Teve uma vez que um cego cantador resolveu ficar
pra “ver”. Quando a coisa apertou, ele bebeu tanta pinga que tocou doze boleros
apaixonados e quatro valsas pra caixa de peixe seco na venda de Seu Benício
Beijador. Ninguém entendeu nada! As horas ficavam mais longas e o desespero
coletivo levava povoados inteiros a vagar pela caatinga rumo à capital. Era
nesse cenário de fome que apareciam os homens santos! Eles arrastavam multidões
de miseráveis e sugavam o resto do pouco que tinham... E pra enganar o estômago
durante o grande calvário, os retirantes, milagreiros, coronéis e jagunços
criavam um mundo mágico. Histórias belíssimas como a do lobisomem, que é uma
lenda europeia e que se adaptou à caatinga como se fosse sua casa. Eles ficaram
fascinados com as casas de farinha e alambiques artesanais.O lobisomem
brasileiro conversa mesmo estando “virado” e tem as mãos iguais às nossas. Os
pés são diferentes! Segundo os antigos, todo lobisomem, independente da região,
é maconheiro. Eles só andam com os olhos vermelhos e sempre estão com muita
fome. Já o Bicho de Pedra Azul só bebe cachaça de “cabiceira”, uísque com mais
de vinte anos, absinto suíço e a legítima Jurubeba Leão do Norte. Se o
butequeiro cair na besteira de servir bebida falsificada, tá fudido! E o Bicho é
outro departamento, não tem nada a ver com lobisomem, nem gosta de ser
comparado. O Bicho de Pedra Azul é 100% brasileiro! A única lenda que não foi
importada e traduzida. Pra completar com chave de ouro, o Bicho é nacionalista!
De fora, só Scotch, absinto e Fernando Pessoa quando escrito em português. No
quesito mulher, ele é eclético: toda mulher é bonita, até as feias!
Quanto à
Mula Sem Cabeça: dizem que foi uma mulher que encheu a cara de pinga e seduziu
um líder religioso, imagine! Depois que
ela deu, “encantou” e virou Mula Sem Cabeça. Eu nunca vi e tenho minhas
dúvidas... Se fosse verdade, nesse mundão de Deus não ia ter pasto pra tanta
mula! Lobisomem não! Isso é coisa séria, nem sei porque nossas universidades
não pesquisam os lobisomens, o nosso é diferente. Ele se aclimatou à caatinga e
vagou pelo reino dos coronéis causando medo aos incrédulos e despertando a
valentia dos coronéis, a maioria deles já tinha tido problemas com lobisomem.
Eles até abatiam os inimigos e falavam que tinham atirado num lobisomem. É que
quando eles morrem, o encanto se quebra e o defunto é o de um vivente comum. Para
se tirar o couro de um lobisomem deve ser logo na hora que o coração para, se
demorar vira um defunto “normal”. Teve até o caso de dois compadres e uma
mulher linda... Um atirou no outro na hora que tava “virado”. O matador casou
com a viúva e ainda aumentou seu latifúndio, eram léguas de caatinga
improdutiva! A dita mulher ajudou a armar a arapuca pra pegar o bichão
desprevenido. Marcou um encontro debaixo de um pé de gameleira preta que tinha
lá pras bandas do encontro da caatinga com a mata. O besta foi pensando que era
Rosinalva Manicure. Teve um dia que ele fez as unhas cinco vezes, os dedos
ficaram em carne viva... O “lobisomem” estava amando! Ele foi enganado
facilmente pelo compadre e pela própria esposa... Quando chegou no lugar do
encontro, recebeu uma chumbada na terceira costela. Morreu em cima da cela, nem
caiu! O compadre ainda considerou, não tirou o couro. Também nem teve processo,
todos concordaram com a estória. O defunto era muito ruim! Tão ruim que ninguém
duvidou que se tratava de um lobisomem, foi enterrado como gente porque quebrou
o encanto na hora que abotoou o paletó.
O compadre não
saiu de perto do caixão durante o velório, eram “amigos” de longa data... Mas
dona Clementina não podia continuar vivendo com aquele traste que em toda lua
cheia se transformava, colocando a vida dela em risco. Foi um alívio! Ela era
muito chic, passava mais tempo em Paris do que na caatinga (seu francês era
fluente). Agora então que o marido bamburrou, achou uma mina de água-marinha na
fazenda. Clementina ficou mais rica ainda. Era famosa nas rodas de socialites
por ter sido a única mulher da Europa que trepou com um lobisomem. Superou
todas as taras e excentricidades do velho mundo...Dizem que até a nobreza quis
saber da madame como era um lobisomem na intimidade.Ela sempre se gabou disso
falando com o nariz empinado e uma voz bem sensual: “Meu ex era um lobisomem sul-americano,
chérie!”. E o safado do compadre que matou o melhor amigo confirmava com os
olhos cheios d’água: “Tive que descarregar o revólver e rezar três credos de
trás pra frente enquanto ele estribuchava. Era ele ou nós! Atirei com pena...”.
E fez uma cara de choro tão feia, parecia um menino arreliento.
A
caatinga quando chove fica linda, os passarinhos e os cantadores de feira fazem
a festa...Mode que essa lambança de ir pra “Sompaulo” grande? A terra tá
molhada, até a lagoa de Diolino Miseravão pegou água, tá uma belezura.
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