‘Bella Ciao’, a história por trás do hino da liberdade e da resistência
A Itália comemora o 75º aniversário da libertação do fascismo. A canção se transformou num símbolo, cujo verdadeiro significado é muitas vezes desconhecido
Cupello (Itália) - 25
ABR 2020 - 14:48 BRT
Bella Ciao (traduzida popularmente em português como Querida, Adeus)
é uma canção anônima, e não existe nenhum dado que esclareça
definitivamente sua procedência. Há apenas semelhanças textuais e
musicais com antigas
composições. Ela é o resultado de uma longa jornada, que foi definindo este
hino à liberdade até a versão conhecida por todos e entoada em cerca de 40 idiomas. Na Itália,
seus acordes não ecoam apenas nas manifestações das “sardinhas”, o
grupo heterogêneo que até há poucos meses protestava nas praças do país
inteiro sobretudo contra a retórica de Matteo
Salvini; também marcam presença cada 25 de abril, o dia em que se comemora a libertação do fascismo em
1945.
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“É um hino dos Partisans [membros da resistência]”, afirma com segurança
Carlo Ghezzi, da Associação Nacional dos Partisans da Itália (ANPI). A
resistência era formada pelas diversas
correntes do antifascismo: havia democratas-cristãos, comunistas,
socialistas, monarquistas e republicanos, entre outros. Um conglomerado
de ideias diferentes que superaram suas discrepâncias ante a necessidade
de combater “o invasor”. “O comandante da
resistência era Raffaele Cadorna, um monarquista, e seu vice-comandante
Luigi Longo, comunista. O antifascismo representou a página mais
importante deste país, e Bella Ciao dá voz a tudo isso”, diz Ghezzi.
Por esse motivo, Bella Ciao acabou se
tornando a música da resistência, a canção que celebra a heterogeneidade
reunida que levou a Itália à libertação. De fato, em sua letra não há
nenhuma referência ideológica, ao contrário
de Fischia Il Vento (Sopra o vento),
cantada sobretudo por partisans garibaldinos e comunistas. A melodia,
que hoje é muitas vezes considerada uma canção de esquerda no país, foi
entoada em diversas ocasiões públicas por políticos
da Democracia Cristã (DC), como Benigno Zaccagnini e Franco Marini.
Além disso, durante os protestos de 1968 os manifestantes não a
cantavam, como explica Carlo Pestelli, autor do livro Bella
Ciao: La canzone Della Libertà (Bella Ciao: a
canção da liberdade): “Eles consideravam que era uma canção para os que
não queriam manchar as mãos.” Em seu lugar, preferiam outros hinos
reivindicatórios como Per
i morti di Reggio Emilia (Para os mortos de Reggio Emilia), de Fausto Amodei, nascido durante os protestos contra o Governo formado pela DC em 1960 com os votos da extrema-direita, ou Contessa (Condessa),
de Paolo Pietrangeli, dedicada a Paolo Rossi, estudante assassinado em
1966 após um confronto com um grupo de jovens extremistas.
Pestelli acredita que existiu um módulo musical sobre o qual elaborou-se o texto de Bella Ciao. Os ancestrais mais reconhecíveis são duas canções populares do norte da Itália do século XIX: Fior
di tomba (Flor de tumba) e La bevanda sonnifera (A bebida sonífera).
Da segunda, entre outros aspectos, procede a reiteração do “ciao”; mas a primeira, herdeira de
Complainte de la Dame a la Tour et du Prisonnier, uma canção francesa de 1536, nas versões de Novara (Piamonte) e Venecia (Vêneto), começa e termina exatamente como Bella Ciao. Em ambas as composições, o tema central é o amor.
Segundo alguns relatos reunidos por Cesare Bermani, especialista em
música popular italiana, uma das primeiras versões reivindicatórias de Bella Ciao remonta
à Primeira Guerra Mundial. Era uma espécie de protesto contra o sistema
militar após o fracasso da batalha de Caporetto, concluída com uma
vitória dos exércitos austro-húngaro e alemão em 1917. De fato, a
palavra “invasor” é substituída por “desertor”.
Mas as duas variantes mais importantes se difundiram no período do
segundo conflito mundial. Uma delas, embora a letra tenha aparecido
apenas em 1951, é narrada pela voz das mondine (arrozeiras), as
mulheres
que trabalhavam de forma temporária nas colheitas de arroz. É provável
que a outra, ou seja, a partisan, fosse curiosamente entoada em três
regiões italianas distantes entre si: Montefiorino (Emilia-Romanha),
onde um médico conhecido como Fiore poderia ter
escrito a letra original; Abruzos, onde a Brigada Maiella poderia ter
entoado também a versão mondina graças à
volta das mulheres locais que haviam colhido arroz no norte; e Alba
(Piemonte), segundo uma pessoa que disse a Pestelli
que a cantou em 1944, quando tinha 11 anos. As três localidades viveram
uma situação de estancamento e isolamento do combate. Isso explicaria,
segundo a teoria de Pestelli, o fato de que fosse interpretada uma
canção que transmitia alegria —e que para as crianças
de Alba servia como contraposição ao mundo adulto.
Essas duas almas se encontraram finalmente no Festival dei Due Mondi
(Festival dos Dois Mundos), de Espoleto (Úmbria) em 1964, onde a
ex-arrozeira Giovanna Daffini apresentou a letra feminina (“Esta manhã,
eu acordei/Ao arrozal devo ir [...] E entre os insetos
e os mosquitos um trabalho duro devemos fazer”), seguida pelo partisan.
O espetáculo, que levava o nome de Bela Ciao, foi
repetido 10 vezes entre 21 e 29 de junho e marcou o ponto de partida
para o renascimento da canção popular. O sucesso
foi tão grande que também houve tentativas de se apropriar da sua
autoria, como no caso de um militar, Rinaldo Salvatori, que dizia ter
escrito Bella Ciao inspirado em outra composição, que dedicou a uma cantora francesa da
qual se apaixonara.
Mas ninguém pôde resolver o mistério que envolve este hino tão famoso. “Bella Ciao tem
sido utilizada de diferentes formas porque é uma canção popular. É
contra um invasor e a favor de algo que todos gostam, a liberdade”,
afirma Pestelli.
Todo ano é ouvida num contexto diferente, como nas manifestações após o
atentado do Charlie Hebdo, em 2015, nos estádios sob a forma de cântico e em séries
como La Casa de Papel. Além disso, vários artistas a interpretaram, como Manu Chao, Woody Allen e Tom Waits.
É a consequência de um sucesso internacional que nunca terminou. E que
provavelmente começou quando um grupo de jovens da região da
Emilia-Romanha apresentou a canção no Festival da Juventude de 1947 em
Praga, coroado depois com o disco de Yves Montand (pseudônimo
de Ivo Livi) de 1963, um italiano de espírito francês que cantava Bella Ciao com o título de Chant des Partisans mudando a pronúncia original.
Nas últimas duas décadas, Bella Ciao se tornou símbolo da esquerda
comunista, sobretudo do ponto de vista da direita. Matteo Salvini,
líder da Liga, e sua companheira de coalizão, Giorgia Meloni, do partido
Irmãos da Itália, criticam com frequência sua representação. Por
exemplo, quando alguns socialistas a entoaram no
Parlamento da União Europeia.
Meloni escreveu no Twitter que aquilo era “escandaloso” e “ridículo”,
e falou de “União Soviética Europeia”. Sobre essa questão, para Ghezzi
não há dúvida. “Está claro que a direita não gosta em absoluto dos
valores do antifascismo, mas essas polêmicas começaram no dia seguinte à
libertação. Nós não discutimos sobre isso desde
25 de abril de 1945”.
L’estaca
Pestelli encontra muitas semelhanças entre Bella Ciao e L’estaca,
o canto catalão antifranquista de Lluís Llach, composto em 1968. Foi
utilizado pelo sindicato Solidariedade na Polônia e traduzido também
ao occitano (língua falada no sul da França) pelo grupo musical Lou
Dalfin, entre outros. “Bella Ciao e L’estaca compartilham
uma certa alegria melódica e são canções populares. Além disso, ambas
têm a ver
com um elemento da natureza: por um lado, a flor; por outro, uma
árvore. São símbolos de uma nova vida através da lembrança”, explica.
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