O amuleto
da sorte
Nando da Costa Lima
Na casa de Simplício
as coisas iam de mal a pior, o azar tinha feito moradia ali, a situação era
deprimente, parecia trabalho feito. Apesar dele não ser supersticioso, apostava
como aquele azar tinha começado depois do aparecimento daquele gato preto em
sua casa. Já tinha gasto três rezadores e um pé de arruda, novenas ele fez pra
tudo que é santo, até os que Castelo cassou foram homenageados, mas de nada
adiantou. O desespero estava estampado na cara de Simplício. Também pudera: a
filha, aquela galinha safada, fugiu com uma banda, e não é banda de rock que só
tem seis componentes; a banda com que ela fugiu é daquelas que toca em coreto,
é difícil uma com menos de 20 músicos. O filho abandonou a cidade pra ser
“guru” numa comunidade. A sogra invocou que a única maneira de rejuvenescer era
através do contato direto com a juventude: os meninos faziam filha pra transar
com a velha assanhada, era uma média de 20 por dia. A esposa piorou de tudo,
era o dia todo meditando em frente a uma imagem de Buda. Depois da confirmação
de Pai Marcel Galego (filho de um marinheiro francês com uma baiana que vendia
acarajé no porto) que ele tava sendo vítima de mau olhado, sua casa virou um
depósito de patuá contra mau olhado, parecia um mini Mercado Modelo. Ele já
tava ficando verde de tanto tomar banho de ervas pra afastar a urucubaca, mas
parecia que só piorava. Era difícil ele sair do banho sem tomar um tombo, parecia
uma múmia de tanto curativo, pois além dos tombos ainda tinha a surra diária
dada pelo curador pra espantar “mau olhado”. Simplício tava de fazer pena, era
o protótipo do homem fracassado, parecia um defunto ressuscitado contra a
vontade. Na casa não havia diálogo, um só se dirigia ao outro pra brigar, e era
briga mesmo, como daquela vez que ele proibiu a sogra de trazer menino pra
dentro de casa. A velha quase mata ele de porrada, se não fosse três rapazinhos
que saíram debaixo da cama e apartaram ele talvez não escapasse vivo. Nesse dia
deu até polícia, mas a situação foi contornada. Simplício reconsiderou e entrou
em acordo com a sogra conseguindo que ela fosse morar em frente ao Tiro de
Guerra. De repente ele teve um sinal de melhora: sua esposa que há mais de um
mês não saía de frente da imagem do Buda de uma hora pra outra passou a se
interessar pelos problemas da casa, principalmente pelo quarto do pai Marcel
que a essa altura já era hóspede permanente de Simplício. Ele já sabia todos os
gostos do pai de santo, e o sacana era bom de garfo. Seus gosto era bem
diferente dos pais de santo tradicionais, detestava dendê e caruru pra ele era
comida de engordar preso. O que ele gostava mesmo era da culinária francesa,
gostava tanto que substituiu as tradicionais comidas de santos por pratos de
sua preferência. Terreiro que ele mandava não entrava dendê, o negócio era
molho verde, patê de fígado de ganso gordo, chantilly com morangos, etc. Ele
tinha certeza de que nenhum santo ia se importar se no lugar de pipocas ele
servisse caviar. Sua clientela era formado por ricos, só atendia pobre quando
recomendado por rico. Agora ele estava atravessando uma fase perigosa, já tinha
acabado com o dinheiro do cliente quase todo e não tinha encontrado uma solução
para o caso. Ainda bem que a mulher de Simplício tava dando cobertura, fingiu
até ter melhorado pro marido não mandar o pai de santo embora. Apesar de
ajudar, esse romance a preocupava: Simplício era um homem violento, e naquela
maré de azar que estava, ir pra cadeia era o mesmo que tirar férias, pai Marcel
tinha que ficar esperto. A mulher tava demais, toda hora que o marido saía ela
corria pro quarto do curador, falava pra empregada que ia tomar “passe”, a
empregada também freguesa dos “passes” fingia que acreditava. E o curador lá na
maior das mordomias, a única preocupação era arrumar um jeito de tomar tudo que
restava de valor e fugir com a mulher do azarado. Como dizem os mais velhos:
“Cabeça vazia é a morada do Diabo”, e é mesmo, tanto é que Pai Marcel já tinha
pensado em mil maneiras de dar fim em Simplício. O otário tinha saído pra
comprar champanhe pra Pai Marcel fazer um trabalho, a mulher aproveitou e foi
ao quarto do pai de santo saber se este já havia arquitetado algum plano, ela
não aguentava mais tanta espera. Ele falou que estava planejando matar
Simplício de susto, e explicou o plano: no estado em que ele se encontrava, e
ainda por cima com a pressão nas alturas,qualquer susto o
mataria. Sendo assim, quando ele chegasse da rua Pai Marcel daria a notícia de
que a esposa tinha morrido. Quando Simplício a visse na cama fingindo estar
morta, bateria as botas na hora. Tinha tudo pra dar certo, além de azarado ele
sofria do coração. E tudo foi realizado conforme o previsto, só que o final não
ocorreu como se esperava: aconteceu que Simplício depois de tanto conviver com
Pai Marcel acabou se apaixonando pelo curador, e na hora que este deu a falsa
notícia da morte da esposa ele não quis nem ver o corpo, pulou pro colo do pai
de santo e fazendo um carinha de virgem desamparada, exclamou com delicadeza:
“Enfim sós”, e largou um beijão daqueles de desentupir pia. A mulher de
Simplício (a falsa morta) notando a demora veio até a sala ver o que tinha
acontecido, e quando viu o marido sentado no colo do curador fazendo uma
respiração boca a boca, não resistiu: o enfarte foi fulminante. Quanto a
Simplício, hoje está bem, o azar foi embora com a morte da mulher, e quando os
amigos tentam desmoralizá-lo falando que ele tem um caso com um pai de santo,
ele se defende categoricamente: ”Pai Marcel não é meu caso, é apenas meu
amuleto da sorte, e quem achar ruim eu processo por homofobia”.
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